domingo, 15 de julho de 2012

E eu, tão amaldiçoada...


  Todos se foram e eu, tão amaldiçoada, resolvi ficar. Sentindo o peso do mundo nas costas e a barra das calças molhadas, avermelhadas da terra escura em que eu pisava. E eu me convencia de que esses maus tempos passariam, que essa coisa de maldição não dura tanto tempo assim, que não existe tempo determinado para acabar e é quando me dou por conta que a falta de tempo determinado determina que poderia eu passar toda a vida esperando e esperando e esperando, assim como quem caminha por um deserto infinito sem nunca achar um oasis sequer. Mas eles se foram e eu, tão amaldiçoada, fiquei.
  Eu detestava aquela cidade. Sabes como é, meu amigo, mas porto alegrense possui manias e vícios de linguagem que me tiravam do sério, como se o fato de fumarem até debaixo de chuva me grampeasse a orelha e me derrubasse ao chão, apenas por lembrar-me de que não possuo perverança alguma, e ah, que se dane, dizia a mim mesma, não sei esperar mesmo e morrerei assim, amaldiçoada, assistindo à partidas de tudo quanto é tipo, futebol, vôlei, basket e dos meus amores, todos eles sem entender bulhufas sobre as regras dos jogos. No final das contas, sempre quem cobrava a falta era eu, e sentia, lá no fundo, uma dor que ninguém mais compreenderia, apenas porque era minha e de mim ninguém tirava. Era a maldição, e ai de quem tivesse coragem de se opor.
  Me arrancava suspiros andar por aquelas esquinas debaixo da chuva de setembro apenas porque em setembro nunca chove em Porto Alegre, e em momentos especiais como essa exceção que os céus resolveram abrir se aproveita, se agarra à oportunidade e não se esquece de agradecer no final, mesmo que chuva significasse que meus cigarros seriam apagados e os goles no conhaque não seriam dados porque conhaque é forte demais para fracos como eu, eu dizia, e esperava um milagre cair dos céus e reverter a maldição, mas eu queria era distância de espelhos se isso significasse mais dor no reflexo. Um reflexo que era eu mesma e eu mesma preferia o silêncio. Tu me desculpes, amigo, mas Porto Alegre é simplesmente terrível.
  A chuva, entretanto, se fazia torrencial e lavava a capital, como lágrimas de um gigante que não divide ovos de ouro, apenas porque ouro branco é mais bonito e vai que, em um dia desses, a galinha resolve fabricar um ovo albino? E chora o gigante, e chora, chora, esquecendo-se completamente que, ei!, em setembro não chove, mas o gosto da chuva permanece em todas as línguas e nações, pois não existe melhor cheiro que esse. De terra vermelha, de terra que permanece grudada na barra das calças de alguém que odeia maldições.
  Mas ah, todos partiram, e eu, que não entendo as regras, fiquei. Maldição, espelhos quebrados e gatos pretos adotados de nome Mimi, escadas que encostaram-se contra o telhado, pois tu sabes, amigo, porto alegrense me tira do sério. Mas nada como chuva fora de época… Pensaremos, sentiremos. Multidão, maldição, todos se foram e eu, tão amaldiçoada… Resolvi ficar.