quarta-feira, 20 de junho de 2012

Dos homens que beijei




Dos homens que eu beijei, apenas um ainda mantém o gosto em meus lábios. Dos homens que beijei, apenas um se faz presente mesmo tendo partido já há longos anos. Os anos que pareciam nunca passar, mas que, por fim, passaram.

Eu estava na esburacada rua no fim de mundo que era aquela praia. Se filmes de terror me dessem medo, aquele lugar me assustaria, pois era exatamente como qualquer filme de mocinhas em perigo e estupradores. Eu sentia alguns grãos de areia fazerem seu croc-croc debaixo de meus chinelos e a sensação térmica deveria ser pelo menos o dobro. Sentia gotas de suor se formarem na base de minhas costas e o biquini parecer ser roupa demais, tamanho o calor. O sol brilhava forte e poucas nuvens alegravam o céu. Era clima de morte, por mais que continuem insistindo que clima de morte é chuva. O sol é muito mais infeliz.

Sentei sob a toalha e senti meu peso acomodar-se contra a areia macia. O sol refletia no chão e meus olhos doíam ao ter o brilho do mar brilhando sobre mim. Quis levantar e ir embora mas sabia que em casa seria muito pior. É normalmente assim quando resolve-se passar as férias com tios distantes. A distância é sempre um problema. Principalmente quando é a distância emocional. Escorei minha cabeça entre os joelhos e observei a cor da toalha. Era azul. 

(Não sei bem porquê sempre tenho essa cisma com cores. Mas elas me encantam.)

Meus dedos dos pés brincavam com a areia enquanto o sol torrava minha cabeça. Suspirei pesado esperando que um milagre caísse do céu e eu pudesse voltar para casa. Na verdade, o milagre poderia ser bem diferente.

Eu procurava a cura. Eu sabia que minha alma estava doente.

Aliás, já que falei sobre as cores, poderia apostar que minha alma tinha um tom acastanhado, como se realmente refletisse o tom de meus olhos. Me pergunto sempre se realmente podemos ver a alma das pessoas ao olhá-las nos olhos. Mas, afinal, quem é que pode responder?

E então ele chegou.

Senti respingos de água atingirem meus cabelos e pernas e fingi não sentir nada. Via pés masculinos parados na minha frente, como que esperando um sinal de que eu fosse levantar minha cabeça e olhar o corpo que ele andara esculpindo há meses. Essas coisas não me interessavam e ainda não interessam.

Aliás, a única coisa que me interessa, é as cores.

Ele sentou ao meu lado e eu sentia seu sorriso. Acho que temos disso, não é? De sentir os sorrisos? Não sei, mas eu podia sentir que ele estava sorrindo. Como se de alguma maneira milagrosa eu sentisse a frequência de seu sorriso, e essa frequência viesse diretamente a mim. Era, sinceramente, assustador.

-         Posso sentar aqui? – perguntou.

E sua voz me atingiu de uma maneira esmagadora. Ele tinha um jeito de falar de outro estado, outro mundo, na verdade. Tinha uma voz rouca e aveludada, e fazia cócegas em meus ouvidos. Aposto que era por não estarem acostumados a ouvir tamanha perfeição em uma voz só. Senti os pelos dos braços se eriçarem e um vento frio me atingir, fazendo voar para o lado os cabelos. Me obriguei a levantar a cabeça e, acredite, ele estava realmente sorrindo.

-         Já sentou. – respondo e ele sorri ainda mais.
-         Sentei. – ele concordou com a cabeça. Parecia achar algo de muito engraçado.

Ele tinha os cabelos muito louros, chegavam a brilhar no sol. Algumas mechas mais acastanhadas misturavam-se ao restante dos fios e seus olhos azuis eram irritantes. Lembro que ele piscava aqueles olhos azul-piscina e seus cílios faziam sombra em suas bochechas enquanto covinhas se formavam. Era um sorriso irônico, extremamente transtornante. Eu estava com raiva de um estranho de quem nem sabia o nome.

-         Gostaria de dar um mergulho comigo? – ele perguntou.
-         Ahn... não, não. Obrigada. – sorri.

Eis algo ridículo sobre mim: tenho fobia do mar.

(Mas não me condene. Se você tivesse os pesadelos que eu tenho, também teria medo. Se os sonhos fossem reais, eu já teria morrido pelo menos umas cinquenta vezes. E todas essas vezes era o mar o meu assassino.)

-         Eu também tenho hidrofobia. – ele comentou, ainda sorrindo.
-         Não tenho hidrofobia, tenho oceanofobia.
-         Isso é ridículo! – ele riu. Está bem, eu realmente tinha inventado a palavra. Ri junto.
-         Eu sei.

Já falei que sou apaixonada pelas cores? Pois é.

Senti o vento  bater em meu rosto enquanto o sol ia baixando no horizonte e refletindo-se no mar. Era um tom alaranjado, lilás e vermelho. Deveriam inventar um nome para essa mistura de cores. Quem sabe... cor de crepúsculo? Cor de alvorada? 

-       Sou apaixonada pelas cores. – eu disse ao estranho e ele continuava sorrindo. Será que ele não sentia câimbra nas bochechas de tanto sorrir?
-         Eu não sou apaixonado por nada. – deu de ombros.
-         Isso é triste.

Ele concordou com a cabeça e parou de sorrir. Eu via uma ruga se formar entre suas sobrancelhas e sua mandíbula contrair-se. Ele estava nervoso por algo e de repente senti vontade de abraça-lo. Queria colocar de volta aquele sorriso bonito de volta em seu rosto. Por mais irritante que fosse vê-lo sorrindo tanto. 

A cor de sua pele era muito clara. Ele quase chegava a refletir no sol, enquanto eu olhava os pelos de suas pernas, tão louros quanto os cabelos. Ele usava shorts azuis, que combinavam perfeitamente com a cor de seus olhos. E com a cor de minha toalha. E do meu biquini.

Azul era a cor daquele dia.

(Acho que cada dia tem uma cor. Em um dia verde podemos sentir um desejo enorme de voar. Sempre associo o verde ao vôo, nunca entendi o porquê. Em um dia azul, talvez possa ser o dia de se apaixonar. Em um dia cor-de-rosa, quem sabe, um dia para chorar? E o que poderia acontecer em um dia cor de crepúsculo?)

Embora parecesse muito mais cor de amanhecer.

-         Eu menti. – ele admitiu.
-         Sobre o quê?
-         Sou apaixonado pelo oceano.

Eu sorri. Vejam só, eu sorri! Isso não é algo que se vê todos os dias.

-         Achei que tinha dito ter medo de água. – comentei.
-         E tenho. Eu tremo inteiro só de pensar em me molhar, nadar, mergulhar. Mas é bom. – ele sorriu novamente.
-         Deve ser. – eu ri.
-         Vamos nadar? Vem comigo?

Ele levantou e sacudiu novamente os cabelos. As gotas que caíram em minhas pernas me refrescaram do sol escaldante daquela tarde na praia abandonada de filme de terror. Sorri imaginando que eu poderia ser a mocinha em perigo e ele o assassino. 

(Ou poderia ser o mocinho. Mas não nos foquemos nisso.)

Levantei e senti minhas pernas começarem a bambear só de lembrar de todos os pesadelos que já haviam me deixado semanas sem dormir. Ondas atrás de ondas, ondas gigantescas me sugando para o fundo do oceano onde meu corpo se perderia. Água entraria em meus pulmões e eu sentiria a pressão se formando em meus ouvidos enquanto a vida se esvaía de mim.

(Azul, além de ser cor para se apaixonar, pode significar cor de morte. Ao menos para mim.)

Caminhávamos em direção ao mar e ele continuava me olhando de canto, sorrindo. Aquele sorriso me tirava o fôlego mas me irritava até à alma. Era sarcástico, como se ele me analisasse a fundo, olhando-me os olhos e vendo minha alma.

(Falando nisso, acho que a sua alma não era azul como seus olhos.)

-         Pronta? – ele me perguntou quando chegamos à beirada do mar. Eu já sentia a espuminha fazendo cócegas em meus dedos e a areia amolecer-se debaixo de meus pés. Era desconfortável.
-         Não acho que algum dia estarei. – suspirei.

E então ele pegou em minha mão. 

O toque era quente, era elétrico. Ele tinha aqueles olhos também elétricos, azuis claros, com uma bordinha mais escura ao redor. Eu podia ver pequenos fragmentos de verde naquele olhar, e era esse verde que me irritava. Estava perdido no meio do azul, como se tivesse fugido de um par de olhos esverdeados e pousado em outro lugar. 

(Minha raiva era, na verdade, que não fossem fragmentos castanhos perdidos ali. Não conseguia admitir que não era o meu olhar que deixava-o elétrico. Mas, pensando bem, nunca gostei muito de levar choques.)

E eu senti.

Eu senti meus pelos se eriçarem mais uma vez enquanto ele me puxava com leveza mais para o fundo. Mas não acho que foi isso que me arrepiou.

-         Coragem! – ele gritou e sorriu. Eu sentia as ondas baterem em minhas coxas e estava irritada com a temperatura da água. Era gelada demais para o meu gosto.
-         Eu nunca fui corajosa! – gritei de volta.
-         Então comece hoje!

A água já passava da minha cintura quando o sol tocou no oceano.

(Às vezes sinto inveja do sol. Já parou pra pensar? Ele é capaz de tocar o mundo inteiro. O mundo... in-tei-ro. Inteirinho!)

A cor de crepúsculo dominava o céu enquanto o estranho continuava segurando minha mão. A eletricidade que ele me passava no começo de repente acabou. Seus olhos ainda me sondavam a alma e o verde perdido naquele olhar ainda me irritava profundamente. Ele era mais bonito do que devia.

-         Teus olhos são muito bonitos. – eu lhe disse. Ele sorriu ainda mais.
-         Já eu me apaixonei pelos teus.
-         Pensei que não se apaixonasse pelas coisas. – retruquei. Ele riu.
-         Eu menti, já lhe disse. Sou apaixonado pelo oceano. E agora, pela cor dos teus olhos. Um castanho tão puro...
-         E o seu é de um azul elétrico. 

Ele olhou para o horizonte enquanto pulávamos para nos livrar das ondas. (Admito que não era assim tão ruim.) O sol refletia em seu rosto e deixava-o dourado enquanto um tom avermelhado se formava em seus olhos e lábios.

(Não sei se já comentei alguma vez, mas o pôr-do-sol também me irrita. Nada tem o direito de possuir cores tão bonitas. É frustrante.)

-         Você fuma? – ele perguntou.
-         Não.
-         Já fumou alguma vez?
-         Sim.
-         E?
-         E o que? – eu ri. Ele riu também.
-         Não continuou fumando por quê?
Porque as cores da fumaça me irritavam. Azul acinzentado. Azul acinzentado é cor de escravidão.
-         Porque não gostei do gosto.
-         Ninguém gosta do gosto. – ele riu.
-         Cale-se.

Olhei para baixo e a cor do oceano me contagiou. Era verde, apesar de parecer azul. 

E então, quando ergui os olhos, ele me beijou.

(É injusto demais essas coisas não terem cor. Mas, se tivesse, tenho plena certeza que seria lilás. Cor de amor, se é que me entende.)

Ele segurava minha nuca e os cabelos, e sua boca fazia pressão contra a minha. Parecia um beijo urgente, necessário. Um beijo que poderia curar uma alma.

E era disso que eu precisava. Por mais salgado que fosse.

-         Qual seu nome? – ele me perguntou quando me soltou.
-         Fulana. – sorri.
-         Prazer, Fulana. Sou Beltrano. – e apertamos as mãos.

(Tudo que mais deveria ter cor no mundo é incolor. Ou talvez apenas tenhamos a alma daltônica.)

Quando saímos do mar, eu sentia minhas pernas caminharem firmes na areia. O estranho caminhava ao meu lado, sacudindo os louros cabelos e eu via os respingos fazerem pequenas marcas no chão. Ele recolheu suas coisas e me sorriu mais uma vez.

-         Adeus. – ele disse. E olhou-me profundamente nos olhos mais uma vez.
-         Adeus. – respondi sussurrando.

Ao lamber os lábios, senti o gosto salobre de seu beijo.
E nunca mais o vi.

Descartável, dobrável e cru


Com um suspiro que veio do profundo de seus pulmões, o caçador guardou a flecha na aljava novamente, sentindo as voltas em seu estômago como um aviso do que o aguardava para a noite: fome. Nada que não estivesse acostumado. Caminhou lentamente até a casa de trocas, sentindo as folhas debaixo de seus pés e o vento frio da noite em seu rosto, os cabelos louros sendo jogados para trás, as mãos tremendo, não por fraqueza, mas pela mais pura dor que o assolava.

Na primeira vez que havia matado uma pessoa, não dormiu por três noites. É claro que não deveria permitir esse tipo de atitude – afetaria em seu desempenho para alcançar seu destino – mas não pôde evitar. Os olhos arregalados, a boca entreaberta, o cheiro de sangue e as gotas deste espirradas em seu própio rosto. Três noites.

Na segunda vez, dormiu. Porém teve pesadelos. Dos mais vívidos e terríveis possíveis. Urubus e corvos e animais rastejantes lhe arrancavam os membros, lhe mordiam a face e bebiam de seu sangue.
E após a terceira vez, ele quis matar de novo.

Sacudiu a cabeça para livrar-se das memórias e abriu a porta da casa de trocas. O cheiro do lugar, terrível no começo, invadiu suas narinas e ele não pôde evitar de cerrar o cenho. Tabaco, cerveja, suor, urina e algo mais, talvez o perfume das prostitutas. Suspirou pesado e aproximou-se do balcão, tirando de sua sacola um cachimbo, como se o cheiro não fosse o suficiente e ele precisasse contribuir. A velha mulher por detrás do balcão lhe sorriu, os dentes amarelados e as olheiras debaixo dos olhos bastante pronunciadas. Ela também emitia um cheiro, cheiro de pessoa velha, se não for rude dizer algo assim. 

“Como vai, caçador?” ela lhe perguntou. É claro que ninguém sabia seu nome. Por que se importaria em conceder tal informação se logo partiria e deixaria para trás essa estúpida floresta? Ele não respondeu. “Não trouxe nada para mim hoje?”

“Você vê algo em minhas mãos?” sua voz rouca saiu confusa e ele pigarreou. 

A mulher soltou uma risada e passou a limpar alguns copos com um pano engordurado. Nenhuma presa, nada que o pudesse ajudar a ganhar um pedaço de pão ou um copo de água, ou quem sabe até um quarto para dormir. Achegando-se de um homem encostado por sobre o balcão, a cabeça descansando nos braços – provavelmente desmaiado após muitas bebidas – o caçador acendeu seu cachimbo com o do homem, aproveitando o fogo. O cheiro da erva aliviou a mistura de cheiros do lugar e ele quase sorriu. Como um bom negociante, ergueu as sobrancelhas à velha, apontando para um pedaço de carne seca pendurada em um gancho na parede. Pigarreou novamente para fazer sua voz sair mais entendível.

“Vai ter uma tempestade hoje à noite,” ele disse.
“Oh, é mesmo?” ela respondeu, não muito interessada.
“Isso significa que os animais estão escondidos. Não sairão hoje, nem que morram de fome,” ele continuou.
“E no que isso se assemelha a você?” ela riu. O caçador bufou e deu mais uma tragada no cachimbo antes de continuar.
“Prefere cobras? Ou quem sabe sapos? Dê-me um pedaço da carne e amanhã lhe trago um coelho gordo, quem sabe dois,” ele disse e interrompeu-a quando ela já começava a negar. “Tudo bem. Posso ir para a outra casa de trocas no lado oeste da floresta.”

Com um humor muito melhor, o caçador saiu do lugar, sentindo o ar frio da noite. O estômago cheio, os pulmões aliviados, a cabeça leve. Ele olhou para cima e suspirou. Teria de encontrar um lugar para dormir. Era esse os destinos dos caçadores, dos desabrigados, dos sem família. Passar as noites frias de tempestade sozinhos, debaixo de uma árvore ou dentro de uma toca, como pequenos e assustados coelhos, exceto pelo azedume de seus corações. Pisando silenciosamente, como um pequeno gato, o caçador caminhou por entre as árvores, seguindo rumo nenhum, as pernas se movendo automaticamente.

“Dalrod,” chamou uma voz conhecida, suave e doce contra o vento frio da noite. O caçador virou sua cabeça, olhando para trás e encontrando os azuis olhos de Ember. Aqueles olhos que denunciavam uma pequena e inocente menina, mesmo que ela também mantivesse sua feição sob uma máscara de frieza. Ela era a única na floresta que lhe sabia o nome, é claro.

“Achei que estivesse em sua árvore,” ele respondeu, a voz rouca fazendo cócegas em sua garganta. Pigarreou mais uma vez, esquecendo que isso nunca adiantava.
“Vai ter tempestade,” ela explicou-se.
“Não me diga,” respondeu ele, soando mais sarcástico do que realmente pretendia. Ela riu.
“Estava tentando achar uma caverna, mas encontrei você ao invés,” ela disse, baixando os olhos, a pouca luz denunciando uma cor um tanto mais escura em suas bochechas. Dalrod sorriu um pouco, as curvas de seus lábios movendo-se para cima, o típico sorriso de quem passou anos evitando sorrir.
“Vem,” ele chamou, começando a caminhar, direcionando-se à caverna onde já havia passado algumas noites. Ember caminhava silenciosamente ao lado dele, o calor de seu corpo, perto do dele, lhe trazendo mais alguns sorrisos. O arco e a aljava em suas costas fazia peso com as novas flechas e com o canto do olho Dalrod percebeu que talvez Ember fosse precisar de algumas. Enquanto dormisse ele poderia esconder algumas em sua aljava.

E ali estava, a prova de que o que tanto odiava e evitava estava acontecendo. Um caçador frio e sem coração, especialmente um como ele, buscando alcançar seu destino, não deveria se importar com ninguém. Não deveria sorrir. Não deveria ter companhia durante a noite. O enfraquecia, o tornava vulnerável. Amor não é algo para pessoas como ele.

Espera. Amor?

“Como está sua mão?” ela interrompeu seus pensamentos.

Dalrod apertou o passo enquanto lembrava de algumas semanas atrás, quando em uma manhã, socou uma árvore até que sua mão direita, e um tanto da esquerda, ficou em carne viva, o sangue escorrendo e a dor lhe tirando os sentidos. Socara a árvore para evitar sentir, Ember cuidou de suas mãos, sentiu ainda mais. Soluções trágicas para problemas temporários – ou quem sabe não.

“Está bem. Usei as bandagens por alguns dias, prometo,” ele sorriu e a risada de Ember lhe fez cócegas no ouvido, esquentando sua frieza, derretendo seu gelo. Ela caminhava um tanto atrás, em diagonal à ele e respirava tão silenciosamente que ele mal podia ouví-la. É claro, ela também estava acostumada com a floresta. 

O silêncio, normalmente bem-vindo, era estranho para ele, o fazia pensar, refletir. Já pensava demais quando sozinho, com Ember ao lado queria apenas... descansar. Por mais estranho que parecesse, ouvir sua voz lhe trazia paz, esperança. Ela lhe trazia esperança. Esperança de que existia solução para ele. Para o humano tão frio como escamas de dragão. Ironicamente. “Você está com fome?” ele perguntou, quando a caverna estava mais perto e ele já podia ver suas sombras escuras na noite também escura.

“Um pouco,” ela admitiu, e Dalrod pensou se ela estava mentindo, diminuindo a intensidade da fome para que não soasse desesperada, mas não perguntou mais nada. Tirou um pedaço da metade de carne seca que guardara e lhe entregou, calorosamente recebendo seu sorriso de gratidão. Suspirou.

Um trovão retumbou nas alturas, lembrando aos dois que não se pode controlar a natureza, e, fugindo realmente de seu controle, algumas gotas geladas de chuva passaram a cair, molhando os cabelos louros de Dalrod, ao que ele puxou o capuz de seu sobretudo, mencionando à Ember que corressem.

A caverna era receptiva, o calor e a sua amplidez lhes davam segurança da chuva que já caía em torrentes, lavando a floresta. Ember passou a trabalhar na entrada, construindo um certo tipo de porta, protegendo-os do vento e de predadores que fossem mais corajosos para sair debaixo da tempestade. O caçador pegou de dentro de sua sacola duas pedras bruscas e alguns galhos que, por precaução, sempre mantinha consigo. Se a porta de Ember funcionasse, fogo seria bem-vindo. 

Ela sorriu e sentou perto da fogueira, as luzes fazendo sombras em seu rosto. Dalrod olhou-a por alguns minutos, desviando os olhos quando ela o encarou de volta. Tirando uma faca de dentro de um bolso de seu casaco, ele passou a rabiscar no chão da caverna, a cabeça um tanto longe. O silêncio era sufocante, embora a garota não parecesse se importar com ele. Ela soltou seu cabelo, sempre amarrado em uma trança, e passou a penteá-los com os dedos, algumas gotas de água caindo deles, marcando o chão com pequenos pontos escuros, logo secando-se graças ao calor do fogo. 

“Aquele dia em que nos despedimos,” ela começou, mas ele levantou a mão, pedindo que parasse.
“Ember, não. Não precisamos falar sobre aquilo,” ele disse. Ela sorriu tristemente.
“Eu só quero entender. Você disse que nunca voltaria.”

Eram as suas intenções. Abandonar a garota que o fizera sentir, a garota que o fizera ter esperança. Rir, chorar, a garota que o trouxera um desejo de estar perto, de abraçar, de... Suspirando, ele acenou com a cabeça por um momento, lembrando daquelas semanas que passara na Ilha, o desejo de voltar que se instalou em seu coração e o tanto que lutou para ignorá-lo. 

“Eu não ia voltar,” ele lhe disse.

Ember parecia querer chorar novamente. As memórias de sua despedida eram frescas em sua mente, o desejo de consolá-la, de abraçá-la até que toda a dor passasse. Odiava vê-la chorando. “Então por que voltou?” ela perguntou-lhe, dizendo exatamente o que Dalrod anciava que ela não dissesse.

Ele passou os dedos por entre seus cabelos, puxando com força alguns fios para trás, utilizando, como sempre, a dor para o acordar. Ele poderia dizer tantas palavras. Contar-lhe que não encontrara nenhum dragão e sua ida à Ilha fora inútil. Que todas as pessoas lhe pareceram frias e sem emoção, assim como ele, tão diferentes dela, de seu calor. Que a floresta era como sua casa, que queria estar perto dela. Eram palavras demais para alguém que preferia o silêncio. Ao menos o dele.

“Eu senti sua falta,” ele lhe respondeu, juntamente com um trovão ressoando no céu, apagando sua voz.
“O que?” ela perguntou, confusa. Dalrod sorriu um pouco, virando as costas para a garota do sorriso caloroso, dos olhos oceânicos, contrastando com todo seu fogo, da esperança, da voz doce. Deitando sua cabeça em uma pedra e abraçando seu próprio corpo, ele fechou os olhos.
“Boa noite, Ember,” ele disse.
“Boa noite, Dalrod,” ela respondeu, deitando ao seu lado, suas costas encostando nas dele.

Abrindo um pouco os olhos, o caçador puxou de dentro de suas roupas um colar, uma face gelada e a outra quente, devido ao toque com a pele. O pingente de dragão refletia a luz avermelhada do fogo quase extinguido e o ressonar de Ember era o único som além da chuva caindo. Não conseguindo evitar, deixou uma única lágrima cair de seus olhos verdes, frios como uma geleira inteira, escondendo a dor da solidão por detrás das pupilas. 

Ele era um Caçador de Dragões. Mas nunca havia matado um. Mataria a si mesmo  se possuísse escamas para provar-lhe de sua frieza, de sua dor. Que esperanças haviam para ele? Estava perdido.

“Eu amo você,” sussurrou em uma voz inaudível, ao que Ember nem ao menos se mexeu durante seu sono. Ela provavelmente sabia que ele iria embora pela manhã, que a deixaria novamente. Não era isso que ele fazia? Fugir?

Ou talvez pudesse dormir um pouco mais... a noite era longa. E certas decisões podem esperar pela manhã.