sábado, 25 de fevereiro de 2012

A meu estúpido Romeu, que, em um ato ufano, deixou-me aqui, esperando encontrar-me além da morte:

  Meu Romeu, meu amor, o que fizestes à mim, o que foi que pensastes? Já não eras tu o mais estúpido dos homens, o mais insensato e pateta de todos os homens existentes? Já não eras tu corajoso o suficiente para matar pobre Tebaldo, ameaçar pobre Paris, invadir minha varanda à noite e declarar-se à altas horas? Não eras tu aquele homem corajoso de me roubar um beijo e ainda pedi-lo de volta como se fosse o mais astuto e sagaz homem de todos? Ora, já percebestes o quanto sois - ou fostes, no caso - mais em tudo que me envolve nessa mediocridade em que ando vivendo? És - ou fostes, no caso. Oh, céus, devo eu me acostumar? - o mais em mim, o mais em minhas varandas, meus castelos, meus vestidos e meus lábios, mais tu, Romeu, e menos Montéquio, menos Capuleto, menos mamãe, menos ama, menos cortinas que me fecham deste mundo em que sou apenas uma menina de quatorze primaveras, apenas uma moça, recém desmamada, diria papai. Tu fostes meus momentos de prazer, de alegria, tu trouxestes a mim as cores do arco-íris à Terra. Tão inteligente, tão persistente, tão você. E agora em que aqui me encontro admirando a brancura da tua pele, o vermelho dos teus lábios, teus olhos fechados e cerrados para sempre… O que pensastes, meu Romeu, o que tivestes em mente? 
  Deves estar decepcionado em não me encontrar, não é? Deves estar a me procurar, a me buscar, gritando por mim em tantas varandas perdidas por aí. Toco teu rosto gélido e me arrepia a pele teu toque ainda assim tão teu, tão cheio de teu amor. Entornando de dentro de nós, aquele amor que não se segura, não se espera e nem se mede. Aquele tipo de amor em que até mesmo a morte não separa. Em teus lábios nem mesmo uma gota encontro, apenas o gosto doce da tua boca eu sinto e te pergunto em silêncio porque fostes tão egoísta, tão mesquinho em tomar toda esta dose de veneno. O que pensastes, meu amor, achastes que te abandonaria deste jeito como tu o fizestes? Não, meu Romeu, meu estúpido Romeu. Mas não te quero deixar, preciso ver teus olhos e te ver pedindo-me perdão. Me matastes, Romeu. Morri. Primeiro por dentro e depois por fora. Agora. Me diz, Romeu, morrer dói? Conversaremos sobre isso depois, meu amor. Por hora, existe um punhal que me espera.
 
    Da tua eterna Julieta nunca mais Capuleto

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Minha cama não tem lado vazio

  Nós não deveríamos esquecer, nem perder, nem fingir que não existe mais nada que nos faça permanecer, mas as coisas acontecem, e acontecem tão rapidamente como uma agulha demora para cair no chão. Eu até diria que acontece nas melhores famílias, mas o amor é uma estrada tão solitária que não julgo existir mais ninguém ao lado de ninguém. Nós seguramos nossa própria mão na hora de dormir, e não é por falta de alguém ao lado. Se quiser saber, minha cama não tem lado vazio. E nessa falta de espaço ao meu lado, imagino várias mãos segurando a minha, acariciando meus cabelos e tocando em meus lábios. Os fantasmas, a morte, demônios, anjos, e o amor. Amor em forma de pessoa, ou talvez uma pessoa em forma de amor. E os olhos do amor eram cinzas.

  Não acreditei nas verdades não contadas, porque essas verdades precisamos aprender sozinhos, e o meu não-acreditar me fez forte, daquelas mulheres que constróem casas, matam baratas e trocam lâmpadas. Se a força fosse fácil assim, se conquistar os mais profundos desejos que podem existir dentro de mim fosse tão fácil, Timóteo estaria morto.

  Timóteo não conseguiu entender que o amor é uma via de mão dupla, e que quando ele partia, eu partia. Quando voltava, eu voltava. E ele foi embora. Se o amor machuca e nos mata e destrói, e se não for tolice o que nos disseram sobre o amor ser suicídio, e se esse suicídio não realmente machucar, se for suicídio feliz, Timóteo deveria estar vivo.

  Nós penteamos os cabelos todas as manhãs apenas para provar que existe algo aqui fora querendo refletir uma beleza que talvez não exista dentro de nós. A verdade é que o coração de todos nós fede a estrume, e a putrefina. Perfume não funciona, maquiagem não esconde olheiras, blush não disfarça palidez de bulimia. Nós nos esquecemos de que fazer carinho no próprio rosto não diminui carência [...] Nós nos esquecemos de que escuridão da noite não pode ser resolvida com luzes acesas, e que segurar os cabelos com força não fará passar dor de cabeça. E que engolir prozac atrás de prozac pode e não pode matar ao mesmo tempo. Mata por fora, mas não por dentro. Negridão de dor, de melancolia e de saudades é que mata o coração, antes de mais nada. Mata sem nem ao menos fazê-lo parar. E nós nos esquecemos que não deveríamos nos esquecer. E lembrar torna-se impossível quando nosso instinto de sobrevivência nos cobra que entremos logo para dentro de casa pois o frio está de matar. A neve grudou em meus cílios.

  Os olhos acinzentados do amor me encaram por dia e noite, e apesar de ter todas as partes de mim sendo negras, existe marrom em meus olhos. Se fosse verdade o que eles dizem, de que nos apaixonamos por um olhar, estou apaixonada pelo amor. O amor que me acaricia os cabelos pela madrugada em que finjo dormir, e pelo amor que me permite massagear seus pés enquanto assiste um campeonato de futebol, o amor que me rouba os cobertores de noite e se controla para não me chutar, chutando igual. O amor que, escondido em sua capa acinzentada, reduz o tamanho dos olhos para não assustar algum despreparado, lustra todas as maçanetas para diminuir o brilho do seu olhar, sem lembrar de que quem olha para si, acaba hipnotizado. Eu faria qualquer coisa, inclusive chutar os fantasmas instalados no quarto escuro em que me deito todas as noites, e chutaria a morte que sorri maliciosa para mim, os dentes podres e atrativos, sussurrando em meu ouvido que não existe história de amor mais bonita que Romeu e Julieta. Ela tem a alma dos dois tolos, não terá a minha.

  E nós perdemos o caminho quando desviamos para pegar um atalho, esquecendo de que essa bobagem chamada “atalho” nunca realmente funciona. A não ser que atolar em um pântano faça bem para a pele. E sobre arrepios de manhã cedo ao ver sorrisos e suspiros e olhares apaixonados no lado vazio que não possuo em minha cama talvez eu precise me preencher um tanto mais, pois apenas o amor dos olhos acinzentados teria coragem de me sorrir assim, e de me sussurrar que meus olhos amassados e meus cabelos arrepiados e mau hálito matinal fazem o momento ser ainda mais especial. Preciso me preencher de coragem. Coragem para beijar os lábios do amor que possuo, e que sabe muito bem que é meu. Coragem para saber que esse beijo significa que distância acabou, e que a janela que costumei abrir todas as noites para sussurrar suspiros apaixonados às estrelas, e essas estrelas refletem um céu distante agora, continua aberta, e que nosso momento chegou. E o momento é agora. Sempre foi agora.

  Eles nos enganaram quando disseram que a dor é natural e que não se pode evitá-la. Abraçar-se a si mesmo para não sentir frio não deve ser assim tão ruim, quando sua cama é vazia, e os pés descobertos sentem os fantasmas tocarem-nos com suas mãos gélidas e seu hálito de morte. A morte, diga-se de passagem, fugiu. Ninguém consegue ficar muito tempo perto de quem não tem medo  da dor. Eu cortei meus cabelos para sentir que me livrava de pesos demasiados, e em meus cílios que antes tiveram neve, agora esquentam-se na ideia de que nada poderá valer mais do que a ideia de pertencer a alguém. Ninguém aguenta muito tempo ao lado de quem não tem medo de cair do vigésimo quinto andar, exceto pelo fato de que tenho fobia de altura. A tal acrofobia, como a chamam. Não que isso faça alguma diferença.

  Nós fomos enganados quando colocamos o dedo indicador por entre os lábios, e mordiscamos a unha já amolecida pelo banho de quarenta minutos que me permiti tomar. Nós fomos enganados por achar que roer as unhas fosse um hábito ruim, quando estalar as juntas dos dedos faz muito mais barulho. E nos enganamos quando concordamos que o silêncio é saudável.

  Em nossa negridão, esquecemos do carteiro Timóteo que entregou nossas cartas de amor, e que mandava-me assinar com minha terrível letra em sua prancheta já preenchida com tantas outras assinaturas. Pessoas que devem ter recebido uma encomenda, uma conta, uma carta de amor, um telegrama avisando da morte da tia mais distante. Isto é, se ainda existissem pessoas que mandam telegramas. E se, claro, a distância chegasse por cartas. Esquecemos que o céu ainda estará com as mesmas estrelas brilhando, tanto faz se a tal da Dalva é a primeira a aparecer no horizonte. Eles nos fizeram esquecer de amar o crepúsculo, porque cor de crepúsculo não existe nas tabelas de cores. Ao menos não com seu próprio nome.

  Nós demos nomes às estrelas, e contamos os grãos de areia até as 2:13 da madrugada, ao invés de arrancar suspiros um do outro, perder as roupas no meio do mar e voltar para casa nus, apenas vivenciando uma escuridão que manchou o lado esquerdo do peito, dizendo que o amor não machuca coisíssima nenhuma. O amor tem olhos cinzas, a morte tem os olhos azuis. E os meus castanhos e teus verdes se juntam em nossa própria composição de Mozart, mesmo sabendo que uma composição de Mozart apenas poderia ser feita, obviamente, por Mozart. Tudo bem, sempre preferi Debussi. Nós sussurramos palavras de amor na madrugada e acordamos os vizinhos com nosso riso solto, e eu ainda acho que tua risada deveria ser melhorada. Não por não ser bonita, mas por ser bonita demais. Não existe jutiça em um mundo onde a beleza de certos olhos verdes podem hipnotizar muito mais que os acinzentados do amor. E eu me esqueci que teus olhos verdes são o amor, ainda que apenas transformado em palavras. Apenas, nada. Transformado em minhas palavras que cospem resquícios de dores passadas, e que machucam minhas costas com o peso de seu significado, apenas para devolver-me que morrer de amor deve ser muito bom. Pergunte ao carteiro!

  Quando olhos verdes misturam-se com olhos cinzas, e quando lábios tocam as duas pintas que possuo bem abaixo da clavícula direita, no lado errado do peito, jamais poderíamos garantir que o preço de se amar tanto assim seria sorrisos, e que esses sorrisos me resultariam em infarte. E que infarte gostoso, que dor maravilhosa.

  Apenas em nosso amor poderíamos esquecer dos fantasmas e ignorar os olhos azulados da morte, e esconder-nos debaixo das cobertas, apertados em minha cama sem lado vazio, achando que assim nos protegeríamos seja lá do que, e apenas assim tu levantarias a espada de madeira que carrega dentro do peito, e que a esconde por muito tempo, cravada no coração. Arrancando-a, se curaria. E se minha cura depender de cravar eu mesma uma espada em mim, e sentir dor por pelo menos alguns minutos para assim sentir que os olhos cinzas do amor e os azuis da morte e os verdes daquele que insiste em esquecer que prefiro as cortinas fechadas à noite, eu cravaria. E faria doer. E, repito, que dor maravilhosa.

  Nós nos enganamos quando dissemos que nunca teríamos descoberto um ao outro se não fosse pela distância. Distância amplifica o amor que é grande, e de amor pequeno estamos cheios. E explodindo de amores pequenos, fiz o maior espaço que pude fazer em meu peito para acomodar-te bem acomodado, mas preciso pedir que cuide a cabeça na hora de passar da sala para o banheiro. A espada está atravessando alguns pedaços, não que eu tenha percebido. Dor que é dor, não dói. Se é que me entende.

  Amor possui olhos cinzas, morte possui olhos azuis e fantasmas não possuem olhos em suas órbitas esbranquiçadas, como estátuas que se escondem na cidade de Londres, que, por sinal, está mais fria do que nunca. A neve que vem e lava meus cílios pode também destruir uma cidade, excluir corações dos mais bonitos lares e fazer com que a dor se instale em olhares que deveriam estar limpos. Só que essa limpeza quem controla não sou eu. Ainda que corrêssemos nus saindo do mar e recêbessemos ao carteiro sem colocar roupa alguma; se teu peito alojado de amor de mim te fizesse sorrir como bêbado enquanto eu danço em nossa sala de estar, ainda assim teríamos de nos lembrar que se algas marinhas caem no carpete, a mancha fica. Assim como as manchas de mostarda que caíram nas cortinas quando comemos pizza na frente da lareira, esquentando os pés que os fantasmas insistem em tentar esfriar.

  Fantasmas não esfriam amores que nascem em fevereiro, e não esfriam amores que possuem calor próprio. Fogo, quando se instiga, queima. Talvez devêssemos deixar queimar, mas nunca morrer. Pois amores que não morrem em fevereiro e não morrem em março e não acabam, nunca, em junho, não perdem o fogo que insistiu em nascer no momento mais improvável com as almas mais improváveis de se apaixonarem. Se um semeador é capaz de ressuscitar uma flor morta, e fazer sua alma sorrir, amores não morrerão nunca mais. Não se o lado vazio da cama não for um problema.

  Nós nos esquecemos que, quando se ama, a cor dos olhos não faz a menor diferença. Mas, devo admitir, sou apaixonada pelos teus. E os olhares que são direcionados a mim, partindo dos teus olhos, para os meus, me derretem. E derreterão, muito embora flores não derretam, flores não morrem. Não para sempre. Nos enganamos em achar que o necessário era disfarçar timidez mechendo nos cabelos e rir um do outro ao nos mandar calar. A melhor maneira de se calar quem quer que seja, é beijando-lhe os lábios. E os meus rachados e frios lábios pertencem a apenas um alguém.

  Nos esquecemos que não devemos esquecer um do outro. E que nunca lembremos disso. Que o novo carteiro, o substituto de pobre Timóteo que morreu de amor, entenda que o brilho em nossos olhos ilumina uma cidade inteira, e poderia matá-lo de dor por não ter alguém para amar como nós temos. Mas que ele entenda que amor se encontra aonde quiser, aonde esse moço de olhos cinzas achar conveniente. A verdade é que sempre achamos que demora demais, sem lembrar que tudo tem seu tempo certo para acontecer. Pergunte à morte! Ela sabe do que eu estou falando.

  Gatos não substituem violinos, e cachorros não incomodam mais que bateria, mas ainda assim atiramos chinelos nos animais para que se calem, e que se calem pelo amor de Deus! Nos esquecemos de que nós também já fomos barulhentos, antes de aprender que o amor é quietinho, sussurrado, sem muito alarde. Amor acontece bem dentro de nós, e se expande em sorrisos, palavras bonitas e sinceridade, principalmente. Sinceridade que às vezes machuca, mas nunca machuca demais. Dor de amor sempre é bem-vinda. E que ao nos afogar nus no mar, tu te lembres que tenho fobia de verde, de verde oceânico. E que salvemos um ao outro quando estivermos afundando. Sabemos nadar. Sempre soubemos.

  E que, principalmente, nesse afogamento, saibamos que quem nos segura a mão, e quem nos amarra juntos e nos faz esquecer de tudo que não seja um ao outro, é ele. O amor. E que nesse esquecimento, e enganação, estejamos longe de esquecer um ao outro. Amor que é amor não morre.

  Nosso jardim não vai morrer. Nem que o reguemos com lágrimas, nem que o universo inteiro conspire contra nós, o amor não pode, nem vai morrer. Apenas sabe disso quem já viu de perto os olhos cinzas esbugalhados deste.

  Minha cama não tem lado vazio.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

A verdade não contada

  Eles esconderam de nós. Eles esconderam que os anjos não possuem asas, eles esconderam que café dá dor de cabeça, eles esconderam que um tiro no pé não dói tanto assim. Não se for um metafórico. Eles esconderam de nós que o amor machuca, mas é bom mesmo assim.
  
  Eles esconderam de nós que Penny Lane não é um lugar assim tão especial. Nos esconderam que não podemos fugir das consequências, eles esconderam de nós que as decisões mais importantes da vida, tomamos sozinhos. Nos esconderam que beijos não curam machucados, que pedir desculpas não muda o fato de que ainda dói. Eles esconderam de nós que não é porque um filme é em preto e branco que significa que ele é bom; muitas vezes filmes em preto e branco serão uma porcaria. Eles esconderam de nós que arranhão de gato arde por semanas, e esconderam muito bem de nós que virar adulto não significa ter idade o suficiente para isso; esconderam que se tornar adulto é quase imperceptível.
  
  Eles nos esconderam que a morte sempre vai doer, e nos esconderam que a morte dói bem mais em quem continua vivo. Eles esconderam de nós que perder alguém não significa necessariamente perder a si mesmo; e nos esconderam que a coisa mais triste que pode acontecer a alguém é perder sua própria essência. Eles nos esconderam que o mundo não gira ao redor de ninguém e esconderam de nós que sempre existirá alguém estúpido o suficiente para achar que gira, sim.  Eles esconderam de nós que a vida não é justa, e esconderam muito bem de nós que não vale a pena tentar fazer justiça; embora não devesse, alguns votos pesam mais que outros.
  
  Eles esconderam de nós que nós mesmos somos eles. Nós escondemos de nós que ‘eles’ é desculpa esfarrapada para não aprender. Nós escondemos de nós que nós não se desamarram com tanta facilidade, escondemos de nós que não se deve desistir de nada; escondemos de nós que se por acaso desistirmos, um peso nos carregará pelo resto da vida.
  
  E nós escondemos de nós que esse “resto da vida” é um tempo muito curto. Escondemos de nós que não vale a pena guardar rancor, escondemos de nós que o perdão sempre deve ser dado, distribuído, oferecido. Escondemos de nós que pedir perdão pode salvar amizades, amores, famílias; e que nem sempre pedir perdão significa estar errado.

  Nós escondemos tudo de nós.
Hannah S.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Fumei, dormi, gritei, amei.

  Eu fumei.

  Fumei um cigarro, apenas um. Traguei a fumaça cinza/azulada, senti-a dançar dentro de mim. Eu fumei a chuva que caía lá fora, eu fumei a neve que se negou a cair. Eu fumei  o medo, fumei a saudade. Fumei o cheiro dos teus cabelos. Fumei o choro que segurei dentro de mim por todo esse tempo. Eu fumei a angústia, a dor no peito, fumei a vontade de cair num penhasco. Eu fumei a escuridão dos meus sonhos. Eu fumei você.

  Eu dormi.

  Dormi por poucos minutos, mas me pareceram várias semanas. Dormi com vontade, dormi de cortinas abertas. Dormi de peito aberto, dormi com cafeína agindo em mim. Dormi os pesadelos, dormi a saudade, dormi o choro, dormi o medo. Eu dormi você.

  Eu gritei.

  Gritei de pavor. Gritei de saudade, gritei para arrancar de mim os fantasmas. Gritei demônios, gritei anjos. Gritei canções, gritei líricos fúnebres. Gritei vendavais, gritei tempestades, gritei calmarias, gritei brisas. Eu gritei frio, gritei calor, gritei primaveras de espinhos, gritei geleiras no verão. Eu gritei você.

  Eu amei.
  Você.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Confissões de Guardanapo

  Peço perdão pela desconsideração de lhe mandar essa carta/bilhete em um papel de guardanapo. Ainda observo essas quatro marcas das dobras, já que abri o papel para que coubessem mais palavras, pois bem sabes que quando começo a falar, nunca mais páro. Ou talvez nunca seja uma palavra fortíssima para exemplificar apenas uma figura de linguagem, um modo de falar, um jeitinho único de tentar cuspir pra fora que falo; e falo muito. Quando tenho em mãos, então, um papel – mesmo sendo ele um pedaço de guardanapo – e uma caneta emprestada de um garçom, vou longe.

  Lestes bem, encontro-me em um bar e neste bar vejo as mais diversas pessoas. Ali no canto encontra-se um rapaz de óculos e um nariz um tanto quanto grande demais. Ele fica olhando para a porção de batatas fritas intocável à sua frente, como se o seu olhar pudesse fazer essa porção diminuir sozinha. Ousaria dizer que tenta comê-la por osmose, mas não entendo de biologia e não arriscarei falar bobagens, mais do que já é uma bobagem escrever-lhe em um pedaço de guardanapo, sentada em um bar, tomando café. Tu sabes que em minha boca jamais entra uma gota sequer de álcool, por mais que um pouquinho de leveza me caberia bem agora. Sinto-me pesada e esse peso me tira o fôlego. Ou talvez seja o calor.

  Ali no canto contrário ao do rapaz de óculos senta uma perua – se é que não seria falta de respeito chamar-lhe assim – que errou a quantidade de maquiagem e sorri para o moço sentado ao meu lado. Acho que está tão embriagada que às vezes confunde o olhar e o direciona à mim. À mim, veja só se pode uma coisa dessas! Eu, sentada aqui sem pensar em mais nada além do quanto este café está em falta no quesito açúcar e eu deveria estar em casa. Mas sempre quis dizer que já entrei em um bar e cá estou. Agora posso lhe dizer: estou em um bar. Escrevendo-lhe este bilhete que mais parece uma carta despedida de guerra, tamanho a extensão de minhas palavras. Como já disse e repito sempre: falo demais.

  O garçom me pergunta se gostaria de algo mais forte. Acredito que minhas olheiras devam entregar-me e contar todos meus segredos. Este moço vestido elegantemente – o que acho uma idiotice, pois todos aqui, exceto eu, estão tão bêbados que poderiam confundí-lo com um pinguim – olha-me os olhos e sei que deve saber que deito em minha cama quando são doze horas e que as cortinas estão sempre bem fechadas, pois com luz não consigo dormir. Tolice! Não durmo de modo algum. Ele sabe que deveria diminuir a quantidade de cafeína, mas que diferença faria se bebesse então algo mais forte, como me aconselha?

  Devo admitir que não era minha intenção passar para a segunda página desse guardanapo, mas é bom. Agora vejo alguns furos que acabei fazendo com a pressão da caneta no fino papel e analiso o comprimento e a largura e o tamanho de minha letra e fico a calcular quantas letras e quantas frases e quantas linhas poderei ainda escrever incomodando-te a madrugada – pois não se engane, eu lhe conheço. Sei muito bem que o quer que seja que lês, é sempre de madrugada. Incrível! – mas nunca fui muito boa com cálculos. Ah, o nunca é muito tempo. Assim como o sempre.

  Sabes aquele sempre que prometemos? O “para sempre” que insistimos em manter em juras e promessas – mesmo sabendo que não as cumpriríamos, pois o “para sempre” não pode ser comandado… assim como muita coisa – não cabe neste guardanapo furado e rasgado e pequeno demais. Basta dizer que apesar de meus cálculos parecerem ter dado certo, meu coração quis falar demais. Assim como eu, o danado sabe como falar! E falando, falando, falando, o pobre guardanapo chega ao fim. Perdôe-me pelos rasgos e furos e manchas de tinta. Prometo que esta gotinha que manchou a palavra “café” foi isto mesmo: café. E não me julgue, peço, por favor. O garçom-pinguim deu-me uma xícara de descafeinado. Como disse anteriormente, o moço sabe bem que não durmo. Quis ajudar-me, o rapaz. Mal sabe ele que não dormirei de modo algum, tendo cafeína em meu sistema, ou não.

  O “para sempre” não deixa-me dormir. Ops. Acabou o papel. Sinto muito. Desculpe a letra pequenina, mas não coube. E eu não poderia terminar esta carta boba sem o mais importante: eu o amo. 
Com amor,

Hannah S.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Daltonismo psicológico e a mudança

  Eu gostaria de saber, Maurício, mas sem pretensão alguma; sem necessidade alguma, apenas sento aqui do lado da janela e fico tentando imaginar qual o motivo, qual o grande motivo... me diga, Maurício, por que raios as cores? E as flores? E o céu, e os planetas, e o mar e os corvos empalhados?

  Nós poderíamos ter tanto, Maurício. Poderíamos ter o mundo e poderíamos não ter nada dele, tenho plena certeza de que se tivéssemos apenas um ao outro, poderíamos resistir a todo esse vendaval que acontece lá fora – e dentro de nós também – e poderíamos ter todo o universo. Sei que buscarias uma estrela no mais profundo infinito se eu assim te pedisse, mas não o quero, Maurício. Nós poderíamos ter tudo; eu... eu poderia ter tudo. Mas quero as cores. Eu quero as cores de volta, Maurício. Será que você também não as quer?

  Nós poderíamos ter tanto...

  
  Maurício, não sinta-se triste por não ouvir mais o meu riso fundindo-se às músicas que tocam em nossa vitrola caindo aos pedaços. Não sinta-se triste por eu ter deixado as flores amarelas morrerem e ter matado as flores vermelhas de tanto dar-lhes água. Não sinta-se triste por eu ter tingido meus cabelos e por ter errado a receita do seu doce preferido, tu sempre soubestes que sou um desastre na cozinha. Não chore, Maurício, por estar vendo as coisas mudarem. Na verdade, Maurício, nós estamos tão distantes um do outro e essa distância é tão tocável... essa nossa frieza é tão tocável que sinto que por isso, sim, deveríamos chorar. E não se entristeça por ver em meus olhos uma dor incompreensível se formar quando vejo a chuva molhando nosso quintal. Eu apenas gosto do sol.


  E tenho medo da morte.


  Mas sabe, Maurício, por ti eu morreria. Eu enfrentaria o medo de trovões e dançaria contigo debaixo de uma tempestade, eu correria entre milhares de pessoas, eu alimentaria pássaros e dormiria de luzes apagadas. Mas Maurício, será que em minha morte, segurarias minha mão? Será que apesar de querermos tanto, não poderíamos ter o pouco que somos e ainda assim poder enxergar novamente as cores? Quero ver azul, Maurício, e quero que tu possas ver novamente meus olhos vermelhos, e quero que possamos nos curar de nós mesmos. Mas, Maurício, nessa cura, ainda quero continuar doente em uma coisa...


  Quero continuar loucamente apaixonada por ti. E se isso não for doença... não sei bem o que é.


  Eu o amo, Maurício. E tu sabes o quanto eu amo as cores.


Hannah S.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Daltonismo psicologico e a paixão latente

  Obrigada, Maurício.

  Obrigada por ainda não ter desistido de mim, por maiores que fossem as dores que te causei. Sei que é insuportável olhar para meus olhos e não enxergar a cor certa e querer subir ao telhado olhar as estrelas e não poder por ter fobia de altura e sei que tua voz se perde no meio dessa multidão de pedras a que chamamos ‘pessoas’. Eu ainda ouço, Maurício, ainda consigo ouví-lo gritar meu nome quando se sente perdido. Sei que estás perdido e sei que se perdeu de mim, mas obrigada, amor, por sempre tentar voltar. Eu te vejo, Maurício, arranhando as paredes e fazendo um som agoniante com as unhas e sinto teus braços se arrepiarem com a gastura de ter pequenos pedacinhos de tinta vermelha fincados na pele. Eu vejo lágrimas se formarem na base de teus olhos e as vejo escorrendo em tua face e vejo teus cílios molhados grudarem na pele e vejo tua boca entreaberta procurar pela minha enquanto eu desvio.

  Eu enxergo, Maurício. E o que vejo não é bonito. Eu vejo o azul tornando-se verde e misturando-se sem piedade ao tempo em que eu queria apenas enxergar normalmente. Eu posso até enxergar, Maurício, posso até ver e ter uma noção bem clara das coisas, mas, Maurício, teus olhos me desmoronam. São eles os culpados, amor, eu sei. São os culpados por essa paixão inquietante que tenho por ti e por todas as cores existentes no mundo. Eu sinto saudades de poder enxergar azul e sinto saudades de poder dormir em paz sem ter tuas mãos acariciando minha cicatriz.

  Maurício, me deixe respirar.

  Mas, ainda assim… obrigada. Obrigada por me tirar o fôlego e por me forçar a procurar tua boca no meio da noite; obrigada, Maurício, por me ressuscitar de tantas vezes que já morri. Obrigada, amor, por me trazer de volta à vida, mesmo que não merecesse. Maurício, lembra-se da Rosa de Hiroshima?

  Tenho pensado muito nela. E em que cor teria.

  Qual a cor da dor, Maurício? Qual a cor da destruição? Qual a cor da saudade? Da perda? Do medo? Qual a cor da morte?

  Maurício, obrigada. Obrigada por segurar minha mão quando penso em me atirar de todos os precipícios a que já fomos e obrigada por me provar que pularia atrás de mim se eu realmente tivesse coragem. Maurício, mesmo que teus olhos estejam normalmente opacos e não pareçam realmente me enxergar, ainda assim sou grata por poderem estar tão perto de mim a cada vez que me viro. Obrigada, Maurício… muito, muito obrigada por nunca desistir de mim. Mesmo  que eu mesma já tenha desistido há muito tempo.

  Quero voltar a pintar, Maurício. Mas não vejo porquê eu pintaria sem saber se o céu que estou retratando é verde ou azul. Se morássemos em um mundo onde o céu é verde, Maurício, que cor seria a chuva? Não seria explêndido se a chuva não fosse assim, tão incolor? E se chovesse vermelho, amor? E se chovesse roxo? Talvez eu tenha capacidade para retratar um mundo onde o céu é verde em minhas telas. Mas a chance de me considerarem louca é grande demais.

  Obrigada por ser tão louco quanto eu.

  Sabe aquela cor, Maurício? A cor da dor, da destruição, da saudade, da perda, do medo… a cor da morte? Maurício… é verde.

  E verde é a cor do amor.

Hannah S.

Daltonismo psicológico e o sentimento de culpa

  Sinto muito, Maurício. Sinto pelas lágrimas incolores que te fiz derramar, sinto pelo sangue que não faltou quando tu querias me matar e eu continuei viva. Sinto muito, Maurício, por continuar acreditando que o que nos prende é o amor. Maurício, que continua fingindo enxergar negro quando vê vermelho, meus olhos estão transbordando lágrimas e eu sinto muito. Sinto muito por sentir tanta dor.

  Eu segui em frente e não consigo entender porquê. Eu mantive meu coração batendo mesmo quando tudo que existia em mim me impelia a desistir. Eu não sei porque, e acho que nunca entenderei. Maurício, eu fingi enxergar verde nos teus olhos azuis, ou talvez tenha sido sem querer e minha cabeça tenha me enganado, mas a verdade é que tu estás em cada milímetro de mim. Eu te sinto na cicatriz do meu umbigo e te sinto por debaixo de minhas unhas. Te sinto dentro de mim em nossas noites de amor, e te sinto por horas depois que acabamos. Te sinto como um monstro se escondendo no armário, só que eu sei, Maurício, que tu não sairás de lá para me assustar. Eu já estou assustada o suficiente, amor. E dói tanto… me arranca pedaços.

  Só que esses pedaços, Maurício, você não juntará.

  Nós amamos as cores. E nós amamos as cores com tanta força que não sobra força nenhuma para amarmos um ao outro. Embora eu tenha jurado a mim mesma que é apenas teu nome, e que é apenas uma cicatriz e que são apenas cores, continua significando demais. Continua tendo significado profundo demais. Tu és todo verde, Maurício, e eu sou toda negra. Só que esse preto que domina nossas paredes e nosso piso e os corvos empalhados que tu insistes em arranjar para guardar dentro de casa podem acabar. Poderíamos pintar novamente as paredes, colocar um piso novo e dar um fim nesses corvos estúpidos. Mas não muda o fato de que meu coração é negro. Sinto muito, Maurício. Sinto muito por não ter morrido.

  Minha morte seria um alívio, não seria? Não seria um bom recomeço pra ti? Será que não somos nós dois a causa de nosso daltonismo? Me mostra a cara, Maurício, e me responda. Somos a causa, ou a cura?

  Eu o amo, Maurício. E eu sinto muito. Sinto muito pelas cordas que tenho comprado e os remédios do hospital que ainda guardo na primeira gaveta da cômoda. Sinto muito pelas tesouras afiadas que tenho levado junto comigo para o banho e por sempre encher a banheira até a borda. Eu apenas queria que tu visses que estou tentando me comunicar.

  O problema é, Maurício, que você está olhando para o outro lado.

  Eu queria voar. Queria abrir minhas asas de corvo e alçar vôo, fugir de ti e finalmente te deixar livre. O problema é que é tu quem estás fugindo de mim. Teus olhares esverdeados continuam se direcionando apenas às estrelas, mas devo te lembrar de que quem vôa aqui, sou eu. Mas não, Maurício. O céu não é meu lugar, assim como o mar não é o teu. Meu lugar é em ti e o teu é em mim. Pelo menos era assim… como dói olhar em teus olhos e ver que já não me queres da mesma maneira. Vá nadar, Maurício, vá. Vá se afogar, vá se perder. Mas não me corte as asas quando eu resolver voar também.

  Vamos fugir? Eu fujo de ti… e tu de mim. Mas pode ser juntos?

  Eu realmente sinto muito.

Hannah S.

Daltonismo psicológico e os planetas

  Amor, o céu não é teu para que me tomes ou me dês, embora continues prometendo que carregaria as estrelas nas costas para assim brilharem para mim. O mar não é teu para que me prometas que se esvazie. Os planetas não são teus para que prometas que virão até mim se eu assim quiser.

  As estrelas não brilham, o mar continua assustador – mas, de certo modo, pedindo para ser desbravado! – e os planetas, distantes. Nada que façamos poderá mudar o fato de que a primavera, as flores e os espinhos não ressuscitarão apenas por nossa causa. Maurício, se ao menos quisesse ressuscitar a mim, eu teria maiores motivos para acreditar nessa história de amor eterno. Mas você, como sempre, está olhando para o outro lado.

  Queria saber o que tem de tão interessante nesse outro lado. Ou será apenas a falta do meu olhar? É isso que aprecias, meu amor? Que eu também olhe para o outro lado e ignore o verde dos teus olhos? Assim como você ignora o vermelho dos meus? Somos um casal triste, Maurício. Ou talvez ‘infeliz’ se encaixe melhor na descrição.

  Eu o amo.

  Sei que não o digo com tanta frequência e talvez seja difícil acreditar, visto meu comportamento diário em tua presença, mas eu o amo. Embora continue acreditando que nossos sorrisos são falsos e nossa frequência de troca de olhares seja muito pequena, eu o amo. Já lhe disse, Maurício? Eu o amo.

    – Você tem algum tipo de frenesi com o meu nome ou o quê? – ouço tua voz se direcionando a mim, olhando bem a fundo os meus olhos. Algo completamente incomum.
    – O quê?
    – Fala o meu nome sem parar, me irrita. – você explica e me sinto perdida.
    – Falo?
    – Sim. Fica sussurrando “Maurício” o dia todo, falando consigo mesma. – Você me olha mais uma vez os olhos e desvia o olhar. Se direciona à janela e me dá as costas.

  Maurício, talvez tu devesses dizer meu nome também. Somos tão contraditórios, amor. Só porque somos daltônicos não quer dizer que não podemos admirar as cores. Só porque moramos em um cemitério urbano não significa que não podemos amar o mar. E amando o mar, amaríamos os planetas, por mais que nenhum se reflita no oceano. Se os trouxesséssemos mais para perto, talvez… mas não.

  Te diria que tenho saudade de ti, mas a saudade não existe para nós, Maurício. Tu vives em mim e eu vivo em ti, e assim nos completamos, nos esquentamos nas noites de frio, caminhamos de almas entrelaçadas. Tanto no verde, quanto no negro. E seremos a cura para nosso daltonismo, basta querer. Tu queres, Maurício? Me queres?

    – Mau… Maurício? – te chamo.
    – Que foi?
    – Eu o amo. – te digo e sinto algo diferente em teu olhar. Me assusta.
    – E eu amo as cores. – você diz e me vira as costas.

  Eu caí, Maurício. E doeu.

Hannah S.

Daltonismo psicológico e o final feliz

  Nós não temos final feliz, Maurício. Eu não sei bem porquê, mas ele simplesmente não existe. Não sei bem o que seria um final feliz, um final em que ambos saímos sorrindo? Isso não existe. Se acaba, acaba mal, acaba com retalhos de coração jogados ao chão e esses retalhos, Maurício, ninguém junta. Se final feliz é final, onde está a felicidade, Maurício? Será que somos nós realmente… felizes?
  
  Maurício, nossa cama ainda está manchada de sangue e eu sei que tu não a limpará. Na verdade eu sei que nada que possa ser vermelho/negro será tocado por ti, visto que evita o quanto pode teu daltonismo. Maurício, meu amor, continua escondendo a cara de mim, colocando o capuz por sobre o rosto achando que assim não posso ver teus olhos azuis/verdes, mas estes olhos, Maurício, os mesmos que me encaravam no hospital após as facadas, eu nunca esquecerei. Algumas visões não são facilmente apagadas, assim como algumas memórias.

  Cicatrizes não doem, Maurício. Mas as memórias, sim.

  Meu Maurício, meu Mau…Maurício, que fazes acordado a essa hora? Quem deveria ter insônia aqui nessa casa sou eu e tu és aquele que ronca a noite inteira. Lá fora a lua já desapareceu no horizonte e a luz do sol ilumina algumas nuvens, deixando o céu com essa coloração rosa e laranja claro. As cores me interessam sempre, tu sempre soubeste, Maurício, e talvez tenha sido por isso que continuas enchendo nossa casa com flores de todas as cores possíveis, exceto o vermelho. E não existem flores verdes, tampouco azuis. A não ser que sejamos Novalis e eu não acho que o somos.

  Ou talvez sejamos Mona Lisa, a estúpida mulher que não sorri, e talvez sejamos realmente pobre Novalis em busca de uma flor de cor especial, azul. A cor dos teus olhos, meu amor, a exata cor dos teus olhos, que eu não consigo ver. Não é triste, Maurício, nosso final feliz? 

    – Bom dia. – você me diz, como se realmente acreditasse que existe algo de bom em acordar antes que os pássaros.
    –   
Estou cansada, Maurício.
    –   
De quê?
    –   
De não enxergar as cores.

  Você suspira pesadamente e meu coração também pesa. O cheiro dos jasmins perto da janela me inebriam e eu sinto que estou morrendo sufocada. Talvez seja a hipocondria que sempre me faz achar que há algo errado, mas me responda, Maurício, como podes ainda achar que esse cheiro me agrada? Teus pés vem se aproximando e eu subo o olhar aos teus olhos verdes… espera. Espera. Eram verdes? Ou azuis?

  Estou me esquecendo das cores, Maurício. Já ouviste algo mais infeliz em toda a sua vida?

    – Você sabia que seria complicado. – tua voz ecoa em nossa sala enquanto eu continuo sentada à tua frente e você parece cada vez mais alto.
    –  
O quê seria complicado?
    –  
Eu e você.

  Não, Maurício, eu nunca soube. Eu sempre soube, na verdade, que teus olhos tinham algo de errado, como se saltassem fora das órbitas toda a vez que eu decidia sorrir. Que mal tem, Maurício, mostrar um pouco os dentes e por que ainda não te acostumaste com a ideia de que as pessoas sorriem quando estão felizes? Deveria eu chorar por ter você ao meu lado? Ou o que esperas de mim é um sorriso à la Mona Lisa? Odeio esse quadro, meu amor, e não me agrada essa tristeza no olhar que algumas pessoas carregam. Odeio principalmente o azul aguado que se instalou nos teus olhos por soluçares a noite toda enquanto eu finjo dormir. Tuas lágrimas te limpam, Maurício? Te lavam, te transformam, são lágrimas boas? São lágrimas de amor? Se forem, Maurício, talvez eu não me importe em deitar minha cabeça em teu ombro e sorrir, visto que eu odeio quando choras. Posso, Maurício, posso sorrir?

    – Nós não somos complicados. Eu e você somos complicados e, juntos, viramos uma catástrofe. – eu digo e você sorri tristemente. Assim como Mona.
    –  
O quão catastróficos somos? – você pergunta e eu levanto drasticamente e ergo as mãos para o alto.
    –  
Como bomba de Hiroshima! – grito e minhas mãos fazem gestos exemplificando a explosão nuclear. Teus olhos se enchem de lágrimas e teu sorriso triste ressurge.

  Você se aproxima e teus braços me envolvem, uma mão sobe aos meus cabelos e teus lábios encostam nos meus. Maurício, não deveria se arriscar tanto assim.

    –  Somos como a rosa de Hiroshima, e não a bomba. – você diz, após livrar meus lábios da pressão dos teus. Eu bem sei que é a mesma coisa, Maurício. Mas nós sempre conseguimos um jeito de mascarar a verdade.

  Somos rosa, Maurício. Uma catastrófica rosa de Hiroshima. Ao menos dessa vez, devo admitir que tu estás completamente correto.

Hannah S.

Daltonismo psicológico e flores amarelas

Maurício, tenho pensado muito nos girassóis que me compraste na última semana. Nosso jardim continua apenas cheio de rosas vermelhas e o nosso negro e verde, que é o que conseguimos enxergar, me contagiam. Maurício, eu posso enxergar o amarelo-alaranjado das flores, mas o céu continua da cor dos teus olhos. Apesar de serem azuis, é o verde que me contamina.

Maurício, mostra a cara. De novo. Sabe, meu amor, não gosto tanto assim de flores. Se para ti elas alegram o ambiente, para mim apenas deprimem. Elas morrem, Maurício. E quem é que vai enterrar uma flor? Elas são jogadas no lixo, junto com nossos dejetos, quem sabe junto com as sobras da comida que não quisemos. Se isso deveria alegrar uma casa, Maurício, estamos olhando para o lado errado. Maurício, por favor, olhe pra mim.

Amor, Mona Lisa continua sem sorrir. O sorriso mais sincero, mais perfeito, mais “blá blá blá”. Me poupe, Maurício. Ela não sorri. Essa mulher tinha uma vida miserável, aposto contigo. E que motivos se tem para sorrir se sua vida não vale a pena?

Maurício, olha pra mim. Vê essa cicatriz em meu umbigo? A culpa é tua. Se o negro te atrai tanto, Maurício, por que continuas fingindo que não? Por que as cores precisam sempre estar trocadas para nós? Maurício, eu amo teus olhos azuis, e sei que tu também gostas do vermelho, mas precisamos realmente olhar de outro jeito? Não seria nosso daltonismo apenas algo da nossa cabeça?

Maurício, não afaste os olhos de mim. Se queres flores amarelas em casa, venha comigo ao jardim e vamos plantar. Mas não me olhe assim. Não se afaste de mim… Não sorria, Mona Lisa. Não desvie os olhos.

Hannah S.

Daltonismo psicológico e o hospital verde


  Maurício, já lhe disse milhares de vezes que não gosto de quando cobre o rosto. De quando coloca o capuz por sobre a cabeça para que não se possa ver teus olhos. O cabelo ruivo sempre me encantou, por que insiste em me fazer esticar os braços para conseguir vê-los? Me vejo repentinamente com o braço cheio de fios se esticando até a sua cadeira do meu lado e você acorda no susto de sentir minha mão fria no teu rosto. Os olhos claros brilham na sombra do capuz e tua boca de repente se abre em um sorriso desesperado e me abraça forte. Minha cabeça gira mais rápido do que qualquer outra coisa e sinto que desmaiaria/vomitaria/morreria se continuasse sentindo teu peso por sobre meu estômago mais um tempo.

        Mau... Maurício... – eu começo e você subitamente levanta, fazendo o capuz cair no impulso. O mundo pára de girar por um tempo apenas para voltar quando sinto teu perfume almiscarado perto de mim. E suspiro pesadamente ao perceber que ainda continuo com a estúpida mania de parar na primeira sílaba do teu nome e começo a tentar me convencer que é, afinal, apenas um nome. Apenas uma sílaba. Que dia é hoje, Maurício?

  Algo estava errado. Nosso quarto possui paredes vermelhas, onde está o guarda-roupa? Por que estou em uma cama de solteiro? Teus olhos me sondam e teu peito arfa, subindo e descendo com uma velocidade impressionante. As mãos sobem aos cabelos compridos demais e você se agacha no chão, chorando. Aos poucos as lembranças vão me assombrando e meus olhos se fecham. Achei que fosse desmaiar novamente, cair pela segunda vez. As quedas, Maurício, acabam com tudo, não é a verdade? Como se o fato de os joelhos tocarem o chão e a cabeça bater com força na queda fizesse com que todo o resto tornasse mais complicado. Levantar, meu bem, deve ser tão complicado. Levantar depois de cair e se machucar de verdade... ah, isso deve ser difícil demais.

Ouço teu pranto inundando o quarto do hospital e a dor começa a me invadir novamente. Maurício, páre de mascarar. Já percebeu como o vermelho te é mais confortável? Se as paredes agora são verdes e tu as enxerga assim, porque deveria chorar por sentir falta do negro? Olhe em meus olhos, Maurício, olhe pra mim. Levanta a cabeça, levanta do chão. Não é porque caiu que tem que ficar sempre ali. Começo a segurar o fôlego e meu umbigo começa a reclamar de dor. Teus gritos me doem ainda mais.

        Mau... Maurício, cale a boca. – eu falo com o resquício de força que ainda me sobra e de repente se esvazia. A morte não veio me buscar? Foi isso? Deve ter se assustado com nosso quarto negro, nossa cama de madeira escura, o guarda-roupa vazio, o cheiro do teu xampu de chocolate. Deve ter se assustado conosco.

Teu choro pára. Você levanta devagarinho e se aproxima de mim, coloca tua mão sempre quente entre meus seios, bem no meio de mim. Não perto o suficiente do meu fraco coração nem o longe necessário para fazer com que ele se acalme. Na verdade, Maurício, eu nem preciso dessa morfina que me estão colocando nas veias. Você é a minha morfina. Mesmo quando as facadas me tiram a vida devagar e quando tuas máscaras vão caindo e se renovando com as tuas diferentes expressões faciais, ainda assim você é a minha cura. Mesmo que em um momento teu daltonismo tenha te levado a uma loucura complicada demais para mim e meus olhos castanhos-avermelhados te fuzilavam com a dor que sentia ao sentir o sangue vazando de mim, ainda assim, Maurício, ainda assim.

Minha mão gelada sobe ao meu peito e segura tua mão com toda a força que tinha – admito, não é muita, sempre fui fraca, mas quando se segura a mão de seu grande amor... ah, Maurício, se você soubesse, se apenas soubesse. A força que me sobe às veias quando sua mão me esquenta por inteira. Ainda que os pontos lategem e quase arrebentem com a dor pulsante que se instalou em mim no momento em que te ouvi chorando, ainda assim quero você por perto. Quero você para pintarmos nossas paredes de uma cor mais clara para tentar trazer mais cor à tua vida. Se vermelho pra ti se torna negro, então vamos adotar o azul. Azul, blue, blau, bleue, blu. E agora fico me perguntando por que apenas em português azul começa com a? Ou será que só estou vendo as coisas por um lado? Com que olhos enxergo, Maurício, se meu olhar é vermelho-negro? Se teus olhos azuis para mim se tornam verdes?

Sinto que vou arrebentar, Maurício. Sinto que minhas extremidades estão para explodir, como se o espinho que me arrancaram do dedo me tornasse inteira. Como se fosse ele que me completasse, o espinho da rosa vermelha-negra para alegrar nossa casa. Mas que alegria se tem, Maurício, quando se pôde ver a morte, se pôde sentir a paz de ir embora, se pôde, por um pequeno momento, não sentir dor? Por que me trouxeram de volta, meu amor? Lá parecia tão mais fácil...

        Eu te amo. – ouço tua voz nos meus ouvidos e uma lágrima tua me arrepia ao cair em meu pescoço.
        E eu amo as cores.

Desmaio. E eu sabia que acordaria mais tarde. Foi estranho como doeu, Maurício. Muito, muito estranho.

Hannah S.