Nós não deveríamos esquecer, nem perder, nem fingir que não existe mais nada que nos faça permanecer, mas as coisas acontecem, e acontecem tão rapidamente como uma agulha demora para cair no chão. Eu até diria que acontece nas melhores famílias, mas o amor é uma estrada tão solitária que não julgo existir mais ninguém ao lado de ninguém. Nós seguramos nossa própria mão na hora de dormir, e não é por falta de alguém ao lado. Se quiser saber, minha cama não tem lado vazio. E nessa falta de espaço ao meu lado, imagino várias mãos segurando a minha, acariciando meus cabelos e tocando em meus lábios. Os fantasmas, a morte, demônios, anjos, e o amor. Amor em forma de pessoa, ou talvez uma pessoa em forma de amor. E os olhos do amor eram cinzas.
Não acreditei nas verdades não contadas, porque essas verdades precisamos aprender sozinhos, e o meu não-acreditar me fez forte, daquelas mulheres que constróem casas, matam baratas e trocam lâmpadas. Se a força fosse fácil assim, se conquistar os mais profundos desejos que podem existir dentro de mim fosse tão fácil, Timóteo estaria morto.
Timóteo não conseguiu entender que o amor é uma via de mão dupla, e que quando ele partia, eu partia. Quando voltava, eu voltava. E ele foi embora. Se o amor machuca e nos mata e destrói, e se não for tolice o que nos disseram sobre o amor ser suicídio, e se esse suicídio não realmente machucar, se for suicídio feliz, Timóteo deveria estar vivo.
Nós penteamos os cabelos todas as manhãs apenas para provar que existe algo aqui fora querendo refletir uma beleza que talvez não exista dentro de nós. A verdade é que o coração de todos nós fede a estrume, e a putrefina. Perfume não funciona, maquiagem não esconde olheiras, blush não disfarça palidez de bulimia. Nós nos esquecemos de que fazer carinho no próprio rosto não diminui carência [...] Nós nos esquecemos de que escuridão da noite não pode ser resolvida com luzes acesas, e que segurar os cabelos com força não fará passar dor de cabeça. E que engolir prozac atrás de prozac pode e não pode matar ao mesmo tempo. Mata por fora, mas não por dentro. Negridão de dor, de melancolia e de saudades é que mata o coração, antes de mais nada. Mata sem nem ao menos fazê-lo parar. E nós nos esquecemos que não deveríamos nos esquecer. E lembrar torna-se impossível quando nosso instinto de sobrevivência nos cobra que entremos logo para dentro de casa pois o frio está de matar. A neve grudou em meus cílios.
Os olhos acinzentados do amor me encaram por dia e noite, e apesar de ter todas as partes de mim sendo negras, existe marrom em meus olhos. Se fosse verdade o que eles dizem, de que nos apaixonamos por um olhar, estou apaixonada pelo amor. O amor que me acaricia os cabelos pela madrugada em que finjo dormir, e pelo amor que me permite massagear seus pés enquanto assiste um campeonato de futebol, o amor que me rouba os cobertores de noite e se controla para não me chutar, chutando igual. O amor que, escondido em sua capa acinzentada, reduz o tamanho dos olhos para não assustar algum despreparado, lustra todas as maçanetas para diminuir o brilho do seu olhar, sem lembrar de que quem olha para si, acaba hipnotizado. Eu faria qualquer coisa, inclusive chutar os fantasmas instalados no quarto escuro em que me deito todas as noites, e chutaria a morte que sorri maliciosa para mim, os dentes podres e atrativos, sussurrando em meu ouvido que não existe história de amor mais bonita que Romeu e Julieta. Ela tem a alma dos dois tolos, não terá a minha.
E nós perdemos o caminho quando desviamos para pegar um atalho, esquecendo de que essa bobagem chamada “atalho” nunca realmente funciona. A não ser que atolar em um pântano faça bem para a pele. E sobre arrepios de manhã cedo ao ver sorrisos e suspiros e olhares apaixonados no lado vazio que não possuo em minha cama talvez eu precise me preencher um tanto mais, pois apenas o amor dos olhos acinzentados teria coragem de me sorrir assim, e de me sussurrar que meus olhos amassados e meus cabelos arrepiados e mau hálito matinal fazem o momento ser ainda mais especial. Preciso me preencher de coragem. Coragem para beijar os lábios do amor que possuo, e que sabe muito bem que é meu. Coragem para saber que esse beijo significa que distância acabou, e que a janela que costumei abrir todas as noites para sussurrar suspiros apaixonados às estrelas, e essas estrelas refletem um céu distante agora, continua aberta, e que nosso momento chegou. E o momento é agora. Sempre foi agora.
Eles nos enganaram quando disseram que a dor é natural e que não se pode evitá-la. Abraçar-se a si mesmo para não sentir frio não deve ser assim tão ruim, quando sua cama é vazia, e os pés descobertos sentem os fantasmas tocarem-nos com suas mãos gélidas e seu hálito de morte. A morte, diga-se de passagem, fugiu. Ninguém consegue ficar muito tempo perto de quem não tem medo da dor. Eu cortei meus cabelos para sentir que me livrava de pesos demasiados, e em meus cílios que antes tiveram neve, agora esquentam-se na ideia de que nada poderá valer mais do que a ideia de pertencer a alguém. Ninguém aguenta muito tempo ao lado de quem não tem medo de cair do vigésimo quinto andar, exceto pelo fato de que tenho fobia de altura. A tal acrofobia, como a chamam. Não que isso faça alguma diferença.
Nós fomos enganados quando colocamos o dedo indicador por entre os lábios, e mordiscamos a unha já amolecida pelo banho de quarenta minutos que me permiti tomar. Nós fomos enganados por achar que roer as unhas fosse um hábito ruim, quando estalar as juntas dos dedos faz muito mais barulho. E nos enganamos quando concordamos que o silêncio é saudável.
Em nossa negridão, esquecemos do carteiro Timóteo que entregou nossas cartas de amor, e que mandava-me assinar com minha terrível letra em sua prancheta já preenchida com tantas outras assinaturas. Pessoas que devem ter recebido uma encomenda, uma conta, uma carta de amor, um telegrama avisando da morte da tia mais distante. Isto é, se ainda existissem pessoas que mandam telegramas. E se, claro, a distância chegasse por cartas. Esquecemos que o céu ainda estará com as mesmas estrelas brilhando, tanto faz se a tal da Dalva é a primeira a aparecer no horizonte. Eles nos fizeram esquecer de amar o crepúsculo, porque cor de crepúsculo não existe nas tabelas de cores. Ao menos não com seu próprio nome.
Nós demos nomes às estrelas, e contamos os grãos de areia até as 2:13 da madrugada, ao invés de arrancar suspiros um do outro, perder as roupas no meio do mar e voltar para casa nus, apenas vivenciando uma escuridão que manchou o lado esquerdo do peito, dizendo que o amor não machuca coisíssima nenhuma. O amor tem olhos cinzas, a morte tem os olhos azuis. E os meus castanhos e teus verdes se juntam em nossa própria composição de Mozart, mesmo sabendo que uma composição de Mozart apenas poderia ser feita, obviamente, por Mozart. Tudo bem, sempre preferi Debussi. Nós sussurramos palavras de amor na madrugada e acordamos os vizinhos com nosso riso solto, e eu ainda acho que tua risada deveria ser melhorada. Não por não ser bonita, mas por ser bonita demais. Não existe jutiça em um mundo onde a beleza de certos olhos verdes podem hipnotizar muito mais que os acinzentados do amor. E eu me esqueci que teus olhos verdes são o amor, ainda que apenas transformado em palavras. Apenas, nada. Transformado em minhas palavras que cospem resquícios de dores passadas, e que machucam minhas costas com o peso de seu significado, apenas para devolver-me que morrer de amor deve ser muito bom. Pergunte ao carteiro!
Quando olhos verdes misturam-se com olhos cinzas, e quando lábios tocam as duas pintas que possuo bem abaixo da clavícula direita, no lado errado do peito, jamais poderíamos garantir que o preço de se amar tanto assim seria sorrisos, e que esses sorrisos me resultariam em infarte. E que infarte gostoso, que dor maravilhosa.
Apenas em nosso amor poderíamos esquecer dos fantasmas e ignorar os olhos azulados da morte, e esconder-nos debaixo das cobertas, apertados em minha cama sem lado vazio, achando que assim nos protegeríamos seja lá do que, e apenas assim tu levantarias a espada de madeira que carrega dentro do peito, e que a esconde por muito tempo, cravada no coração. Arrancando-a, se curaria. E se minha cura depender de cravar eu mesma uma espada em mim, e sentir dor por pelo menos alguns minutos para assim sentir que os olhos cinzas do amor e os azuis da morte e os verdes daquele que insiste em esquecer que prefiro as cortinas fechadas à noite, eu cravaria. E faria doer. E, repito, que dor maravilhosa.
Nós nos enganamos quando dissemos que nunca teríamos descoberto um ao outro se não fosse pela distância. Distância amplifica o amor que é grande, e de amor pequeno estamos cheios. E explodindo de amores pequenos, fiz o maior espaço que pude fazer em meu peito para acomodar-te bem acomodado, mas preciso pedir que cuide a cabeça na hora de passar da sala para o banheiro. A espada está atravessando alguns pedaços, não que eu tenha percebido. Dor que é dor, não dói. Se é que me entende.
Amor possui olhos cinzas, morte possui olhos azuis e fantasmas não possuem olhos em suas órbitas esbranquiçadas, como estátuas que se escondem na cidade de Londres, que, por sinal, está mais fria do que nunca. A neve que vem e lava meus cílios pode também destruir uma cidade, excluir corações dos mais bonitos lares e fazer com que a dor se instale em olhares que deveriam estar limpos. Só que essa limpeza quem controla não sou eu. Ainda que corrêssemos nus saindo do mar e recêbessemos ao carteiro sem colocar roupa alguma; se teu peito alojado de amor de mim te fizesse sorrir como bêbado enquanto eu danço em nossa sala de estar, ainda assim teríamos de nos lembrar que se algas marinhas caem no carpete, a mancha fica. Assim como as manchas de mostarda que caíram nas cortinas quando comemos pizza na frente da lareira, esquentando os pés que os fantasmas insistem em tentar esfriar.
Fantasmas não esfriam amores que nascem em fevereiro, e não esfriam amores que possuem calor próprio. Fogo, quando se instiga, queima. Talvez devêssemos deixar queimar, mas nunca morrer. Pois amores que não morrem em fevereiro e não morrem em março e não acabam, nunca, em junho, não perdem o fogo que insistiu em nascer no momento mais improvável com as almas mais improváveis de se apaixonarem. Se um semeador é capaz de ressuscitar uma flor morta, e fazer sua alma sorrir, amores não morrerão nunca mais. Não se o lado vazio da cama não for um problema.
Nós nos esquecemos que, quando se ama, a cor dos olhos não faz a menor diferença. Mas, devo admitir, sou apaixonada pelos teus. E os olhares que são direcionados a mim, partindo dos teus olhos, para os meus, me derretem. E derreterão, muito embora flores não derretam, flores não morrem. Não para sempre. Nos enganamos em achar que o necessário era disfarçar timidez mechendo nos cabelos e rir um do outro ao nos mandar calar. A melhor maneira de se calar quem quer que seja, é beijando-lhe os lábios. E os meus rachados e frios lábios pertencem a apenas um alguém.
Nos esquecemos que não devemos esquecer um do outro. E que nunca lembremos disso. Que o novo carteiro, o substituto de pobre Timóteo que morreu de amor, entenda que o brilho em nossos olhos ilumina uma cidade inteira, e poderia matá-lo de dor por não ter alguém para amar como nós temos. Mas que ele entenda que amor se encontra aonde quiser, aonde esse moço de olhos cinzas achar conveniente. A verdade é que sempre achamos que demora demais, sem lembrar que tudo tem seu tempo certo para acontecer. Pergunte à morte! Ela sabe do que eu estou falando.
Gatos não substituem violinos, e cachorros não incomodam mais que bateria, mas ainda assim atiramos chinelos nos animais para que se calem, e que se calem pelo amor de Deus! Nos esquecemos de que nós também já fomos barulhentos, antes de aprender que o amor é quietinho, sussurrado, sem muito alarde. Amor acontece bem dentro de nós, e se expande em sorrisos, palavras bonitas e sinceridade, principalmente. Sinceridade que às vezes machuca, mas nunca machuca demais. Dor de amor sempre é bem-vinda. E que ao nos afogar nus no mar, tu te lembres que tenho fobia de verde, de verde oceânico. E que salvemos um ao outro quando estivermos afundando. Sabemos nadar. Sempre soubemos.
E que, principalmente, nesse afogamento, saibamos que quem nos segura a mão, e quem nos amarra juntos e nos faz esquecer de tudo que não seja um ao outro, é ele. O amor. E que nesse esquecimento, e enganação, estejamos longe de esquecer um ao outro. Amor que é amor não morre.
Nosso jardim não vai morrer. Nem que o reguemos com lágrimas, nem que o universo inteiro conspire contra nós, o amor não pode, nem vai morrer. Apenas sabe disso quem já viu de perto os olhos cinzas esbugalhados deste.
Minha cama não tem lado vazio.