sexta-feira, 13 de abril de 2012

Daltonismo psicológico e o despertar de um sonho

    Maurício,

  Eu acordei ontem. Despertei de um sono profundo – ao menos foi o que me disseram – e agora ando meio confusa por aí. Ainda sinto dor em todas as partes do meu corpo e não tolero que me dirijam a palavra. Toda vez que ouço a voz de alguém fico irritada até a alma e penso em me atirar da janela mais próxima. Não sei bem porquê – na verdade sei – mas qualquer voz que não é a tua me causa arrepios terríveis na espinha e sinto que meu mundo despenca no mesmo momento.

  Meu amor, meu Maurício, acabou. Meu sonho, nosso sonho, acabou. Terminou, apagou-se como todo o fogo que dura tempo demais e acaba com um pequeno sopro, tão suave que nem pareceria capaz de causar qualquer dano às chamas. Mas acabou. Estamos apagados, diminuídos e feridos e acordados. Despertados. Disseram-me que após a minha falha tentativa de suicídio fui levada às pressas para o pronto-socorro onde apaguei. Não sabiam ao certo porquê mas o coma parecia totalmente psicológico, coisa minha, decisão minha. Tolos! Era você, amor, não era? Era você, meu Maurício, segurando-me em seus braços e me prendendo, me proibindo de voltar para esse estragado mundo real. Em minha mente nós poderíamos viver um amor que nunca acabaria, com suas tempestades e vulcões e explosões, mas tínhamos a nós. Mesmo sem enxergar as cores muito bem, mas nós tínhamos a nós. Eu era sua, Maurício, e você era completamente meu.

  “Quem é Maurício?” perguntaram-me e me sinto destruir e cair aos pedaços e chorar e arrancar de mim pedaços de pele, arranho meus braços e rosto ao lembrar de minha voz quebrada chamando por ti e não obtendo resposta. O hospital não era verde, e não era teu cabelo ruivo e olhos azulados que enxerguei. Meu despertar foi doloroso, Maurício. Amarram-me as mãos e sedaram-me para que me acalmasse. Se é isso que querem, amor, fingirei que estou bem. Mas ao entrar no banheiro e trancar atrás de mim a porta, não deixo de notar as diferenças. Ao espelho vejo meu cabelo agora curto – cortaram-me os cabelos, amor. Como puderam? –, o sorriso amarelado devido aos remédios e as olheiras arroxeadas debaixo de meus olhos cor de… Maurício. Meus olhos não são mais vermelhos, amor. Não sei o que fizeram comigo, mas vejo essas escuras pupilas movendo-se e encarando-me e não sei bem a quem pertencem. A mim não deve ser.

  Eles amarraram minhas mãos, mas não minha mente. Ainda sou sua, Maurício. Ainda te vejo subindo por cima de mim na madrugada para acariciar meus cabelos e tocar a faca gélida em meu rosto, assustando-me apenas para rir de mim. Aquela risada paranóica enquanto fazia os chiados para me acalmar, assustando ainda mais. Ainda sou tua, Maurício, pois sei muito bem que estás aqui o tempo todo. Se é suicídio como querem chamar, que chamem. Foi tua culpa, amor. Fui esfaqueada por ti, por mais que ousem chamar-me ‘mentirosa’. Mal sabem eles o que se passa em nossa cabeça, não é, pequeno? Maurício, olhe em meus olhos. Reflita-se em meu olhar e deixe-me enxergar-te pela última vez, entregar-me a ti uma última vez, chorar em teus braços e soluçar pedindo-te um amor que na verdade já era meu. Sempre fomos um do outro, e sempre tivemos medo de nos perder sendo que já estávamos perdidos. Mas eu te encontrei, Maurício, e não te largo mais. Se é coma como querem chamar, que chamem. Era você, amor, era você segurando-me os braços e pedindo com voz suave um “fica mais um pouco”. Querias me matar mais uma última vez antes de me mandar embora. Não podias me perder, assim como eu não te posso perder.

  Não chore, Maurício. As lágrimas coloridas que escorrem da tua face me assustam, água não deveria ter cor. Não deveríamos tentar colorir o que é incolor, colocar sabor no que é insoso. Não chore, Maurício, guarde-as. Guarde essas lágrimas e use-as para chamar-me de volta. Não se prenda no medo, amor, não se prenda na loucura de que somos inventados, de que não existimos. Tu és meu, só meu, e eu sou toda tua. Não fuja, não vá embora. Me espera?

  Realidade, para mim, é você, Maurício.
  Sempre sua,

Hannah S.

Mas, que menina

  Me perdi em seus olhos quando ela me contou de seus sonhos e pesadelos. Unicórnios  voadores poderiam fazer qualquer um rir, mas ao focar-me em suas íris esverdeadas fiz-me enxergar em um paraíso encharcado de lágrimas secas. Ela transformou o gosto de  álcool em minha língua em um atípico sabor agridoce, um sabor de menina problema. Ela  me encarava com aqueles olhos verdes de sorvete de menta, os dentes tortos e a língua  áspera, os dedos amarelados de nicotina, a fumaça do cigarro fazendo-a ainda mais  assustadora; eu tinha medo. Medo de me apaixonar e ser deixado, aquele desespero de  errar em um momento em que não devia e então chorar por ela todos os dias.

  Ela me tirou de órbita, me fez flutuar no azul de sua blusa sem decotes, me fez sentir o sabor do beijo que nunca me deu, me fez dormir em um colo que nunca me ofereceu. Era  engraçado, ela continuava me encarando com olhos arregalados, colocando uma mecha , insistente a cair, atrás da orelha, perguntando-me a única pergunta que eu não sabia responder. Poderia inventar um nome, dizer-lhe um daqueles nomes poéticos que vemos apenas em livros mas nunca na vida real, mas eu estava perdido. Acabado, torturado. Sentia o cheiro de urina em um canto e do outro uma brisa trouxe o cheiro de champagne com morango, onde apenas peruas conseguiam ter coragem de pedir. Eu estava completamente perdido, destruído. Ela me encarava, continuava me encarando, e aqueles  lábios cor-de-rosa, o inferior menor que o superior, aquele sorriso torto e errado...  Ela era de um sabor incrível, de um esplendor que duraria para sempre. Ela trazia um  violão nas costas, e as unhas quebradas me diziam que talvez aquela voz de menina azeda  pudesse se tornar bastante doce, os dedos amarelados amarelando as cordas de nylon. Mas não tocou para mim.

  Ela riu e eu me perdi na sua voz. Era errada, desafinada, fora de todos os tons existentes, mas ainda assim me fez flutuar ainda mais naquele cheiro que ela exalava, um cheiro de menina que não sabia o que queria para a janta, que dirá para todo um futuro. O seu sabor era de menina que viraria o que lhe pedissem, que não sabia ser ela mesma mas acaba sendo do mesmo jeito. Ela tinha sabor de álcool e chiclete de uva, uma mistura de algo que não deveria existir. Ela me tirou do chão quando me colocou contra a parede pedindo que eu fugisse do mundo para ela. Ela me encarou, as sobrancelhas mal feitas arqueadas, os olhos verdes tramando algo contra os meus, querendo me arrancar do mundo em que eu nunca realmente vivi. Ela me fez jurar que não contaria a ninguém seus segredos, seus unicórnios voadores que me arrancaram do mundo real, se é que esse realmente existia. Eu estava completamente perdido.

  Ela me fez sumir, virar fantasma. Eu me via refletido naquelas pupilas, me via enfeitiçado por aquelas palavras sem sentido algum, sem motivação alguma para me causar tudo que causava, aquele jeito de gritar para falar com quem estava a meio metro de distância, aquele jeito de implorar por carinho, de arregalar os olhos e derreter os mais pesados corações. Ah, tão linda, tão estranhamente esquisita. Ela me fez prometer, sem dizer ao menos uma palavra, que eu seria dela. E eu me entreguei, me deliciei com aquele olhar, com aquele sabor, o cheiro, com o jeito que me encarava.

  Ela me mandou embora antes que eu pudesse perceber. Tocou os dedos amarelados em minhas bochechas e encarou-me mais uma vez, os olhos brigando com os meus, fazendo-me derreter, explodir, implodir, virar pó. Empurrou-me para a rua, olhou-me com os olhos entristecidos uma última vez e me fez prometer, sem uma palavra, que eu nunca mais voltaria, que aquele bar era só dela. Era ela, era ela, era toda ela. O universo era aquela mulher que me amarrou sem medos ou inseguranças, que me encarou e arrancou de mim pedaços que não pertenciam a ninguém, nem mesmo a mim, e tomou para si. Era ela, minha menina...

  Aqueles olhos esverdeados nunca mais encararam os meus. Mas ah, que menina... eu estava perdido.