terça-feira, 10 de setembro de 2013

Ela acordou se sentindo feia

O namorado disse que era bobagem, que era a mulher mais linda que ele já vira. Ela sabia que era mentira. Não com tantas mulheres maravilhosas por aí, tipo a Megan Fox, que de defeito só tem o dedo. Ela olhava no espelho e as lágrimas surgiam antes mesmo que ela pudesse pensar em qualquer outra coisa. E aquela pinta horrorosa? Ela nem sabia que existia! Surgiu quando? Só pode ter sido enquanto dormia…
O nariz era torto, haviam sardas escondidas por debaixo de uma pele clara, ainda que não tanto assim. Não poderia ser chamada de branquinha, mas também não podia ser considerada morena. Ela era meio-termo, podia existir algo mais sem graça do que isso? Os cabelos não eram nem crespos, nem ondulados, muito menos lisos. Caíam por seus ombros e paravam na linha do sutiã, lisos na raiz e comprimento, ondulado nas pontas. Castanho escuro, assim, cor de nada. Tipo cor de burro quando foge. Ele até disse que tinha uma queda por morenas, que loiras nunca foram seu tipo, até disse que adorava aqueles olhos castanhos e o brilho que eles tinham, os braços, as pernas, o rosto delicado. Ela se achou grotesca, espelho ridículo. Voz feia. Voz de gente chata. Será que ela era chata também? Ele nunca mais olharia pra ela… Ai, ai, ai. “O que diabos te aconteceu hoje, amor?!”
Nada. Ela só acordou se sentindo feia.

Caro desconhecido,

Acho impertinente perguntar a uma moça sua idade, mas visto que não me perguntaste nada, tenho vinte e sete anos de idade. Sou de estatura mediana, embora isso pouco importe para ti, imagino. Esta carta? Não sei. Acho que uma carta para pedir perdão, para chorar. Uma carta para dizer adeus.

Tenho vontade de me tirar a vida. Sei que é errado: não devo arrancar algo que não é meu, deixar para Deus escolher a hora, mas não posso mais aguentar. Estou doente! Sinto dor no coração, já sentiste algo assim? Chamam-na de depressão, e ninguém me entende. Dizem por aí que não me ajudo, é o que ouço sussurrarem com as portas entreabertas enquanto me escondo debaixo dos cobertores em meu quarto escuro. Sou solteira, solteirona. Quiseram-me casar aos vinte e cinco, já tarde, mas não quis. Era um rapaz desinteressante, com olhos acinzentados tristes e uma expressão de quem colocava as esperanças de fazê-lo feliz todas em mim, depositadas em minhas costas. Ora! Não posso nem ao menos fazer a mim mesma feliz, que dirá a ele. Neguei, por certo. Chamaram-me louca. Não ligo. Estou doente, já disse? Doente! Cansei de esconder. Reprovam-me, não me compreendem. Não ligo, já disse?

Não quero tirar minha vida, não tenho coragem. Mas que esperanças tenho eu? Não quero algo tão banal como o amor, tão simplório. Quero algo que me tire o fôlego, que me arranque o respirar. Quero ser a inspiração para uma tela colorida, assim como Picasso possuía suas diversas musas. Quero ser linda para alguém, ainda que feia. Por isso me sinto assim, tão desanimada com a vida. Caminho por essas ruas, vou ao Porto, dobro as esquinas e sento aos cafés, mas nada me faz sorrir. Dizem que é por isso, porque me sinto só. Mas me diga, meu caro desconhecido, existirá alguém por esse mundo afora que não se sinta assim, tão terrivelmente só? Não posso crer em tal blasfêmia. Encontro milhares de olhares em um mesmo dia, e são poucos aqueles que carregam uma luz, um brilho especial. Quase me dão esperanças de não fazer nenhuma estupidez, porém quando chego em casa e passo pelos jardins de entrada, sentindo o cheiro dos jasmins que eu mesma plantei, e quando abro a porta e quando encontro minha mãe e meu pai sentados em frente à lareira, minha mãe lendo um livro qualquer e meu pai lendo seu jornal de sempre, encontro os mesmos olhos acinzentados do rapaz que queria que eu o fizesse feliz. Olhares desesperados. Tenho certeza que se pudessem, fariam qualquer coisa para sentir-se feliz. E é isso que me tira novamente as esperanças. Eles encontraram o amor uma vez, mas isso não os fez felizes. Acomodaram-se, acostumados. Sinto saudades do som do riso da minha mãe, das piadas do meu pai. Male mal levantam seus olhos de suas leituras para saudar-me em casa. Sei que sou um peso.

É por isso que escrevo. Porque me abstenho de ficar em casa e vou ao Porto, escrever. Já lhe escrevi diversas cartas, mas nunca sei o que fazer com elas. Acabo as guardando debaixo de meu travesseiro, relendo-as horas depois. Me fazem chorar muito. É por isso que esta carta eu jogo no mar, dentro de uma garrafa. Não sei bem qual a percentagem de chance de alguém a encontrar - de você a encontrar! - mas é nessa esperança que preciso me agarrar. Pois se não for por ela, minha vida chegará ao fim cedo demais. Chegará ao fim sem nenhuma reviravolta emocionante, como acontece em todos os livros que gosto de ler. Se estou no clímax, deposito em você - perdoe-me por isso - o desfecho da história da minha vida. Quer chegue esta carta ou não, quer me responda ou não, tenho a plena certeza que minha vida nunca mais será a mesma. Mando-lhe uma foto, não por desejar que veja meu horrendo rosto, mas porque gosto de saber a feição de alguém quando com este falo. Ora, por que para ti seria diferente? Escreva-me, por favor. Escreva-me. 

Agradeço-lhe por trazer-me esperança. Obrigada,

Léia Horne

quinta-feira, 7 de março de 2013

Era 1912



O jovem rapaz virou mais uma dose de um líquido forte e mal-cheiroso que o garçom lhe servia de bom grado, talvez em seus olhos a luz de uma pequena preocupação de que não recebesse tudo que devia, embora Sean não fosse do tipo que fugia deixando para trás uma conta não-paga. Ele sabia bem como era viver com menos dinheiro do que deveria ganhar e uma quantia ainda menor do que sobreviveria com. Seu pequeno apartamento adormecia em sujeira que não tinha tempo para limpar e que mulher nenhuma o faria, não sem um bom pagamento antecipado. Sua reputação de abusador do belo sotaque irlandês que possuía já se espalhara e ele acostumou-se em passar o menor tempo possível no lugar que chamava de casa.

Apontou para o copo vazio, levantando uma sobrancelha castanha em seu rosto belo de barba mal-feita, coçando levemente a orelha esquerda. Podia ouvir ao fundo O.D.J.B tocando e uma moça pequena de cabelos louros sentada no outro lado do bar, com seu vestido azul marinho, de olhos de igual cor. Ela batucava os dedos contra o balcão, como que a espera de alguém que se aproximasse para lhe tirar para dançar. Sean estava embriagado e tonto, sem capacidade para soar qualquer palavra coerente.

"Quem é ela?" perguntou ao garçom que lhe atendia, um moço de olhos verdes penetrantes que não parecia muito feliz por ainda estar por ali. Talvez pertencesse à uma família, à uma mulher. Tolo, pensou Sean. Apenas os tolos faziam algo assim.

"Rose McAuliffe. Vem aqui todas as noites," respondeu o rapaz dos olhos verdes, sem parecer preocupado o bastante para esconder qualquer que fosse o segredo que trazia uma moça para estar sozinha, sentada a um bar, em uma data tão imprevista quanto 1912. A música era o Jazz, a bebida era o gim, o coração batia forte contra as costelas. "Surpreso por ver uma moça em um lugar como esse?"

"Aye," respondeu o europeu, sorrindo levemente. Sim, surpreso. Uma atrocidade assim poderia apenas significar uma coisa: facilidade para adentrar um rabo de saia e dar-se bem com a limpeza do chão de sua casa. O pó acumulava-se mais fácil do que deveria. E a solidão de estar longe de casa poderia diminuir levemente com uma respiração quente ao seu lado na cama pequena de um solteiro no século XX. Ah, que dolorosa experiência essa de fugir de casa, mas quão bem sentia-se ao revelar-se útil em um ataque naval ou aéreo, embora não fosse militar. A América precisava de todos, convenhamos. Sean sabia disso. Seu espírito livre e nômade ainda lhe renderia alguma coisa.

"Que é que poderia trazê-la aqui? Não é uma prostituta, é?" o moço perguntou, sem crer na resposta que viria a seguir, antes mesmo que chegasse aos lábios do garçom.

"É uma comissária de bordo."

Ah, quão simples eram estas respostas e que alívio lhe traziam ao coração. "Trens ou navios?" perguntou, um sorriso brincando nos lábios.

"Que importa?" riu o garçom. Sean deu de ombros. Lhe parecia tão óbvio quanto uma conta de séries primárias. Acabou por rir em conjunto com o moço dos olhos verdes, erguendo uma sobrancelha.

"Não quero procurar por todos os navios lá fora para então descobrir que ela é comissária de bordo em trens," o irlandês riu mais uma vez, seu sotaque então se intensificando. "Seria uma perda de tempo sem tamanho!"

O garçom, cujo nome ainda era uma incógnita para o jovem embriagado que mal e mal sabia seu próprio nome, que dirá perceber que conversar com alguém sem saber como lhe chamar, era no mínimo desrespeitoso, ainda que o bar de quinta classe não fosse o tipo de lugar que demanda esse tipo de tratamento; Sean fôra ensinado corretamente a nunca falar com estranhos, a não beber exageradamente, a não arranjar para si moças duvidosas, rebeldes, ultrajantes. Porém, é claro, Sean O'Malley não era exatamente o tipo de rapaz que seguia regras. Pois bem, o pobre garçom, cansado, de olhos verdes sobrecarregados, puxou de dentro de seu bolso da calça, um pequeno pedaço de papel com pequenos furinhos em todo seu contorno.

"Vamos, pegue," disse. Apenas então Sean percebeu que o moço parecia com alguém que ele já conhecera alguma vez, mas sua feição familiar não ajudava se seus olhos já estavam começando a ficar embaçados. "Alguém que nunca mais voltou deixou o tiquet aqui. É seu."

Apertando os olhos com força, Sean tomou para si o tiquet, tentando, em vão, ler o que dizia.

"Qual o navio?"

O garçom sorriu.

"Titanic."

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Precisa de ritmo?

Se abrisse os olhos, veria a mulher por quem estava aos poucos me apaixonando.
Eu não sabia o que era pior. Memórias de um passado feliz ou a ilusão de uma felicidade temporária.

- Mentiroso.

Meus braços ainda estavam envoltos na cintura de Lume, e eu tinha meu queixo encostado em sua cabeça, seus cabelos fazendo cócegas em meu pescoço. Mantive minha posição e preferi não olhá-la nos olhos.

- Por que diz isso? – perguntei.

Ela pousou a cabeça em meu peito enquanto dançávamos, suas unhas roçando contra minha nuca.

- Nunca me disse que sabia dançar – respondeu ela.
- Não acho que isso me faz um mentiroso.

Lume pareceu pensar sobre o que eu disse por alguns instantes.

- Te faz o que?
- Um omissor, o que é ainda pior.

Ela suspirou e suas mãos passaram de minha nuca até meu peito, e ela forçou com as palmas para que nos afastássemos, olhando-me nos olhos. Parecia decepcionada.

- Queria que visse a si mesmo como eu o vejo. Adoravelmente bom, não tão quebrado, não tão triste – ela falou, usando um tom de voz de partir o coração. Se queria que eu não fosse tão triste, não deveria olhar-me com aqueles olhos azuis cor-do-céu por debaixo dos cílios, derretendo minha indiferença perante ela.

- Prefere me chamar de mentiroso apenas porque não é tão ruim? – perguntei e ela riu docemente.
- Prefiro dizer que estou surpresa que saiba dançar. E feliz.

Como poderia estar feliz? A própria frase parecia tão cheia de tristeza.

- Feliz?
- Sim. Me sinto feliz. Você se sente assim também? – Lume apertou seus dedos contra meu peito, como se quisesse arrancar a resposta de dentro de mim.

Fechei os olhos por alguns momentos e a abracei. E então, sussurrei em seu ouvido:

- Sim. E triste porque a música está acabando.

Ela riu e rodopiou, segurando minha mão esquerda acima de sua cabeça. Abraçou-me novamente e instigou-me a recomeçar a dançar. O som esvaiu-se poucos segundos após.

- Podemos dançar até o amanhecer, se quiser.

Sorri um pouco, apenas um lado de minha boca movimentando-se.

- A que ritmo? – perguntei.
- Precisa de ritmo?

Rimos ambos. E antes que pudesse mudar de ideia, antes que pudesse sequer pensar sobre o assunto, aproximei-me de Lume um tanto quanto bruscamente, arrancando dela um beijo.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

A arte de olhar com outros olhos

Nunca trocaram sequer um olhar. A menina que não sabia desenhar rabiscava os olhos dele nas paredes de seu quarto. O garoto do coração de leão sonhava com as montanhas que escondiam os seus fantasmas; porém não possuía olhos. Sonhava com a perda da visão que não lhe aguçou os demais sentidos, entretanto lhe fez um valente por natureza.

A menina não sabia que tipo de sonhos sonhar e prometia aos céus que não iria correr, que não iria cair. Nas penumbras da madrugada rabiscava com carvão em uma parede preta; ela nunca encontrou os seus olhos; ele nunca conseguiu fazê-la sonhar.

Na abstinência das cores nos olhos daltônicos da menina, o garoto encontrou seu sorriso; na falta de visão nas órbitas vazias dele, a menina encontrou seus sonhos desenhados em todas as cores existentes. Ele não sabia de suas expressões, ela nunca poderia dizer qual era sua cor preferida. Não se entristeciam; completavam-se em suas imperfeições. O coração-de-leão lhe protegia das aborreções de ser bonita; ela lhe protegia dos medos de ser o único a nunca ver o azul do mar.

Nunca trocaram sequer um olhar. Mas se enxergavam todos os dias.