Com um suspiro que veio do profundo
de seus pulmões, o caçador guardou a flecha na aljava novamente, sentindo as
voltas em seu estômago como um aviso do que o aguardava para a noite: fome.
Nada que não estivesse acostumado. Caminhou lentamente até a casa de trocas,
sentindo as folhas debaixo de seus pés e o vento frio da noite em seu rosto, os
cabelos louros sendo jogados para trás, as mãos tremendo, não por fraqueza, mas
pela mais pura dor que o assolava.
Na primeira vez que havia matado uma
pessoa, não dormiu por três noites. É claro que não deveria permitir esse tipo
de atitude – afetaria em seu desempenho para alcançar seu destino – mas não
pôde evitar. Os olhos arregalados, a boca entreaberta, o cheiro de sangue e as
gotas deste espirradas em seu própio rosto. Três noites.
Na segunda vez, dormiu. Porém teve
pesadelos. Dos mais vívidos e terríveis possíveis. Urubus e corvos e animais
rastejantes lhe arrancavam os membros, lhe mordiam a face e bebiam de seu
sangue.
E após a terceira vez, ele quis
matar de novo.
Sacudiu a cabeça para livrar-se das
memórias e abriu a porta da casa de trocas. O cheiro do lugar, terrível no
começo, invadiu suas narinas e ele não pôde evitar de cerrar o cenho. Tabaco,
cerveja, suor, urina e algo mais, talvez o perfume das prostitutas. Suspirou
pesado e aproximou-se do balcão, tirando de sua sacola um cachimbo, como se o
cheiro não fosse o suficiente e ele precisasse contribuir. A velha mulher por
detrás do balcão lhe sorriu, os dentes amarelados e as olheiras debaixo dos
olhos bastante pronunciadas. Ela também emitia um cheiro, cheiro de pessoa
velha, se não for rude dizer algo assim.
“Como vai, caçador?” ela lhe
perguntou. É claro que ninguém sabia seu nome. Por que se importaria em
conceder tal informação se logo partiria e deixaria para trás essa estúpida
floresta? Ele não respondeu. “Não trouxe nada para mim hoje?”
“Você vê algo em minhas mãos?” sua
voz rouca saiu confusa e ele pigarreou.
A mulher soltou uma risada e passou
a limpar alguns copos com um pano engordurado. Nenhuma presa, nada que o
pudesse ajudar a ganhar um pedaço de pão ou um copo de água, ou quem sabe até
um quarto para dormir. Achegando-se de um homem encostado por sobre o balcão, a
cabeça descansando nos braços – provavelmente desmaiado após muitas bebidas – o
caçador acendeu seu cachimbo com o do homem, aproveitando o fogo. O cheiro da
erva aliviou a mistura de cheiros do lugar e ele quase sorriu. Como um bom
negociante, ergueu as sobrancelhas à velha, apontando para um pedaço de carne
seca pendurada em um gancho na parede. Pigarreou novamente para fazer sua voz
sair mais entendível.
“Vai ter uma tempestade hoje à
noite,” ele disse.
“Oh, é mesmo?” ela respondeu, não
muito interessada.
“Isso significa que os animais estão
escondidos. Não sairão hoje, nem que morram de fome,” ele continuou.
“E no que isso se assemelha a você?”
ela riu. O caçador bufou e deu mais uma tragada no cachimbo antes de continuar.
“Prefere cobras? Ou quem sabe sapos?
Dê-me um pedaço da carne e amanhã lhe trago um coelho gordo, quem sabe dois,”
ele disse e interrompeu-a quando ela já começava a negar. “Tudo bem. Posso ir
para a outra casa de trocas no lado oeste da floresta.”
Com um humor muito melhor, o caçador
saiu do lugar, sentindo o ar frio da noite. O estômago cheio, os pulmões aliviados,
a cabeça leve. Ele olhou para cima e suspirou. Teria de encontrar um lugar para
dormir. Era esse os destinos dos caçadores, dos desabrigados, dos sem família.
Passar as noites frias de tempestade sozinhos, debaixo de uma árvore ou dentro
de uma toca, como pequenos e assustados coelhos, exceto pelo azedume de seus
corações. Pisando silenciosamente, como um pequeno gato, o caçador caminhou por
entre as árvores, seguindo rumo nenhum, as pernas se movendo automaticamente.
“Dalrod,” chamou uma voz conhecida,
suave e doce contra o vento frio da noite. O caçador virou sua cabeça, olhando
para trás e encontrando os azuis olhos de Ember. Aqueles olhos que denunciavam
uma pequena e inocente menina, mesmo que ela também mantivesse sua feição sob
uma máscara de frieza. Ela era a única na floresta que lhe sabia o nome, é
claro.
“Achei que estivesse em sua árvore,”
ele respondeu, a voz rouca fazendo cócegas em sua garganta. Pigarreou mais uma
vez, esquecendo que isso nunca adiantava.
“Vai ter tempestade,” ela explicou-se.
“Não me diga,” respondeu ele, soando
mais sarcástico do que realmente pretendia. Ela riu.
“Estava tentando achar uma caverna,
mas encontrei você ao invés,” ela disse, baixando os olhos, a pouca luz
denunciando uma cor um tanto mais escura em suas bochechas. Dalrod sorriu um
pouco, as curvas de seus lábios movendo-se para cima, o típico sorriso de quem
passou anos evitando sorrir.
“Vem,” ele chamou, começando a
caminhar, direcionando-se à caverna onde já havia passado algumas noites. Ember
caminhava silenciosamente ao lado dele, o calor de seu corpo, perto do dele,
lhe trazendo mais alguns sorrisos. O arco e a aljava em suas costas fazia peso
com as novas flechas e com o canto do olho Dalrod percebeu que talvez Ember
fosse precisar de algumas. Enquanto dormisse ele poderia esconder algumas em
sua aljava.
E ali estava, a prova de que o que
tanto odiava e evitava estava acontecendo. Um caçador frio e sem coração,
especialmente um como ele, buscando alcançar seu destino, não deveria se
importar com ninguém. Não deveria sorrir. Não deveria ter companhia durante a
noite. O enfraquecia, o tornava vulnerável. Amor não é algo para pessoas como
ele.
Espera. Amor?
“Como está sua mão?” ela interrompeu
seus pensamentos.
Dalrod apertou o passo enquanto
lembrava de algumas semanas atrás, quando em uma manhã, socou uma árvore até
que sua mão direita, e um tanto da esquerda, ficou em carne viva, o sangue
escorrendo e a dor lhe tirando os sentidos. Socara a árvore para evitar sentir,
Ember cuidou de suas mãos, sentiu ainda mais. Soluções trágicas para problemas
temporários – ou quem sabe não.
“Está bem. Usei as bandagens por
alguns dias, prometo,” ele sorriu e a risada de Ember lhe fez cócegas no
ouvido, esquentando sua frieza, derretendo seu gelo. Ela caminhava um tanto atrás,
em diagonal à ele e respirava tão silenciosamente que ele mal podia ouví-la. É
claro, ela também estava acostumada com a floresta.
O silêncio, normalmente bem-vindo,
era estranho para ele, o fazia pensar, refletir. Já pensava demais quando
sozinho, com Ember ao lado queria apenas... descansar. Por mais estranho que
parecesse, ouvir sua voz lhe trazia paz, esperança. Ela lhe trazia esperança.
Esperança de que existia solução para ele. Para o humano tão frio como escamas
de dragão. Ironicamente. “Você está com fome?” ele perguntou, quando a caverna
estava mais perto e ele já podia ver suas sombras escuras na noite também
escura.
“Um pouco,” ela admitiu, e Dalrod
pensou se ela estava mentindo, diminuindo a intensidade da fome para que não
soasse desesperada, mas não perguntou mais nada. Tirou um pedaço da metade de
carne seca que guardara e lhe entregou, calorosamente recebendo seu sorriso de
gratidão. Suspirou.
Um trovão retumbou nas alturas,
lembrando aos dois que não se pode controlar a natureza, e, fugindo realmente
de seu controle, algumas gotas geladas de chuva passaram a cair, molhando os
cabelos louros de Dalrod, ao que ele puxou o capuz de seu sobretudo,
mencionando à Ember que corressem.
A caverna era receptiva, o calor e a
sua amplidez lhes davam segurança da chuva que já caía em torrentes, lavando a
floresta. Ember passou a trabalhar na entrada, construindo um certo tipo de
porta, protegendo-os do vento e de predadores que fossem mais corajosos para
sair debaixo da tempestade. O caçador pegou de dentro de sua sacola duas pedras
bruscas e alguns galhos que, por precaução, sempre mantinha consigo. Se a porta
de Ember funcionasse, fogo seria bem-vindo.
Ela sorriu e sentou perto da
fogueira, as luzes fazendo sombras em seu rosto. Dalrod olhou-a por alguns
minutos, desviando os olhos quando ela o encarou de volta. Tirando uma faca de
dentro de um bolso de seu casaco, ele passou a rabiscar no chão da caverna, a
cabeça um tanto longe. O silêncio era sufocante, embora a garota não parecesse
se importar com ele. Ela soltou seu cabelo, sempre amarrado em uma trança, e
passou a penteá-los com os dedos, algumas gotas de água caindo deles, marcando
o chão com pequenos pontos escuros, logo secando-se graças ao calor do fogo.
“Aquele dia em que nos despedimos,”
ela começou, mas ele levantou a mão, pedindo que parasse.
“Ember, não. Não precisamos falar
sobre aquilo,” ele disse. Ela sorriu tristemente.
“Eu só quero entender. Você disse
que nunca voltaria.”
Eram as suas intenções. Abandonar a
garota que o fizera sentir, a garota que o fizera ter esperança. Rir, chorar, a
garota que o trouxera um desejo de estar perto, de abraçar, de... Suspirando,
ele acenou com a cabeça por um momento, lembrando daquelas semanas que passara
na Ilha, o desejo de voltar que se instalou em seu coração e o tanto que lutou
para ignorá-lo.
“Eu não ia voltar,” ele lhe disse.
Ember parecia querer chorar
novamente. As memórias de sua despedida eram frescas em sua mente, o desejo de consolá-la,
de abraçá-la até que toda a dor passasse. Odiava vê-la chorando. “Então por que
voltou?” ela perguntou-lhe, dizendo exatamente o que Dalrod anciava que ela não
dissesse.
Ele passou os dedos por entre seus
cabelos, puxando com força alguns fios para trás, utilizando, como sempre, a
dor para o acordar. Ele poderia dizer tantas palavras. Contar-lhe que não
encontrara nenhum dragão e sua ida à Ilha fora inútil. Que todas as pessoas lhe
pareceram frias e sem emoção, assim como ele, tão diferentes dela, de seu
calor. Que a floresta era como sua casa, que queria estar perto dela. Eram
palavras demais para alguém que preferia o silêncio. Ao menos o dele.
“Eu senti sua falta,” ele lhe
respondeu, juntamente com um trovão ressoando no céu, apagando sua voz.
“O que?” ela perguntou, confusa.
Dalrod sorriu um pouco, virando as costas para a garota do sorriso caloroso,
dos olhos oceânicos, contrastando com todo seu fogo, da esperança, da voz doce.
Deitando sua cabeça em uma pedra e abraçando seu próprio corpo, ele fechou os
olhos.
“Boa noite, Ember,” ele disse.
“Boa noite, Dalrod,” ela respondeu,
deitando ao seu lado, suas costas encostando nas dele.
Abrindo um pouco os olhos, o caçador
puxou de dentro de suas roupas um colar, uma face gelada e a outra quente, devido
ao toque com a pele. O pingente de dragão refletia a luz avermelhada do fogo
quase extinguido e o ressonar de Ember era o único som além da chuva caindo.
Não conseguindo evitar, deixou uma única lágrima cair de seus olhos verdes,
frios como uma geleira inteira, escondendo a dor da solidão por detrás das
pupilas.
Ele era um Caçador de Dragões. Mas
nunca havia matado um. Mataria a si mesmo
se possuísse escamas para provar-lhe de sua frieza, de sua dor. Que
esperanças haviam para ele? Estava perdido.
“Eu amo você,” sussurrou em uma voz
inaudível, ao que Ember nem ao menos se mexeu durante seu sono. Ela
provavelmente sabia que ele iria embora pela manhã, que a deixaria novamente.
Não era isso que ele fazia? Fugir?
Ou talvez pudesse dormir um pouco
mais... a noite era longa. E certas decisões podem esperar pela manhã.