sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Olha...

  Não, não fui eu. Ou talvez tenha sido. Olha, uma parte de mim quer que você entenda que eu fico louca do teu lado, que você me faz ficar totalmente tonta e sem ar, e outra parte quer convencer a mim mesma de que isso é coisa de filme francês. Olha, eu queria te dizer que não fui eu, mas acontece que talvez tenha sido e eu não entendo mais minhas próprias ações.
  Olha, talvez eu tenha tentado fugir, correndo mesmo, escapando e pulando os meio-fios que separavam meus pés do asfalto cinza escuro com aquelas manchas de chiclete mascado, talvez. Mas talvez eu apenas quisesse respirar um pouco, me entende? Talvez eu estivesse cansada de toda essa tontura que você me dá, essa coisa que você me causa que eu nem sei se existe nome. Acho que confusão seria uma boa. Olha, talvez tenha sido eu, está bem? Se eu tivesse certeza, diria.
  Olha, talvez eu tenha feito aquele truque com o olhar, talvez tenha crispado os lábios algumas vezes e talvez minhas mãos não tenham saído de perto dos teus braços, mas ainda assim talvez eu possa cismar de que foi tudo apenas engano, de que eu nunca tive intenção de olhar-te com os olhos infantis arregalados e mentir dizendo que tinha medo de trovões. Talvez tenha sido eu, mas juro que há uma percentagem - por mais pequena que seja - que tenha sido outro alguém, ou de que talvez, - uma percentagem ainda menor - você tenha deixado. Deixado o quê? Ah, bem…
  Olha, eu realmente me olhei no espelho antes de sair de casa e baguncei o cabelo apenas porque você disse que garotas ao natural são mais belas que as arrumadas, olha, admito que talvez eu tenha borrado o batom um pouquinho na beirada apenas pra você rir de mim e me ajudar a limpar. Talvez, olha, talvez eu tenha criado situações para nós. Oportunidades. Olha, talvez eu tenha corrido apenas para sentir teus braços ao meu redor me implorando pra ficar, talvez eu tenha controlado o tempo em meu relógio de pulso apenas para que, quando à meia-noite, teus olhos fossem os primeiros que eu encontrasse no início do novo dia, mas eu juro, não tenho tanta certeza se fui eu. Talvez você tivesse deixado?
  Olha, talvez eu tenha roubado teu coração, mas olha… talvez eu goste dessas palavras repetidas, talvez eu goste de inventar situações e oportunidades para que nossos lábios ficassem a centímetros um do outro apenas para rir e correr, talvez eu goste de imaginar que nossas vidas ficariam lindas entrelaçadas juntas, mas olha…
  Teu coração é meu? Olha, talvez pudesse ser…

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

# carta 203


    Querido Bernardo,
  Acho que as coisas estão começando a melhorar. Sorri ontem, com vontade. Não machucou minhas bochechas, como acontecia toda vez que era forçado. Não me machucou o coração, nem me feriu as mãos como quando eu cravava as unhas na pele. Foi tão singelo, tão silencioso e rápido. Foi bom.
  Sinto que a cura está começando. Tenho chorado, não pela dor, mas pela necessidade. Acreditei nisso durante tempo que é difícil agora tentar me desvencilhar de meus próprios pensamentos e desejos. Prefiro manter-me assim, sã (em alguns termos). Gosto de imaginar-me rica às vezes, cercada por gatos em uma mansão gigantesca, mas essa imagem não se encaixa muito bem no que é minha realidade. Eu sou pequena demais, quebrada demais para conseguir qualquer coisa sozinha além de uma horta no quintal e consertar o buraco na janela. Matei os tomates, mas os morangos continuam a crescer. Faz frio e deveria tê-los protegido da geada, porém quem iria imaginar que plantas pudessem ser tão frágeis como nós? Custa muito mais para se consertar do que para se quebrar. No entanto, sendo sincera, não irei replantar os tomates. Nunca gostei de comê-los de qualquer maneira.
  Já passa das três horas da tarde. O sol está alto e quente, é bom. É bom para caminhar, é bom para apenas sentar na grama, com um livro em mãos. Ah! Falando em livros, reuni todos aqueles que não leio mais e os doarei a um sebo. Os que possuem dedicatórias me partem o coração, mas me deixam alegre ao mesmo tempo. Pode imaginar que aventura seria receber um livro com a dedicatória que nunca saberemos quem é?! Quem sabe eu compre algum livro por lá também.
    P.S. Não levarei guarda-chuva. Se por algum acaso chover, ficarei doente. Não é tão ruim, não é? Chá com mel é uma delícia.
    P.P.S. Eu te amo.
  Sua,
Hannah Schröer

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Às vezes eu sinto sua falta



  Não esqueça que eu me atiro, como num silêncio dos inocentes que continuam a caminhar em direção à sentença sem deixar sair um único som dos lábios rachados de injustiçados perdedores. Eu me atiro dos penhascos e não espero que me segurem; se quiser agarrar minha cintura uma última vez e pular comigo, não há importância. Só o faça.
  Eu me acostumei a apoiar os cotovelos na porta do carro, contra o vidro gelado que memoriza a chuva caindo lá fora. Acabei por marcar a pele dessa maneira vil de me assegurar de que não caia do movimento, e embacei a janela com o respirar cheirando a refresco de cereja. Eu queria, veja bem: não sei se devo, mas queria, e queria apenas, que as botas enlameadas encontrassem as tuas nesse fim de mundo enlagado; faz frio. Imaginar que os céus choram é depressão demais? Sinto-me só; continuo no carro.
  Não sei o que ando fazendo nesses dias, se escrever tornou-se um frenesi do estilo efeito borboleta, mas esqueço-me tão facilmente de tudo que meu coração nem sabe mais o que é bater; tive dois infartos semana passada. Mas nunca pense, nem chegue a pensar, veja bem: nem cogite a ideia, e não sei bem porquê insisto nisso, mas nem pense em mim. Salve-se. Que frio! Estamos caminhando, como mariposas atrás de uma luz que não existe, batendo em cada vidro que resolve acender uma vela, quente demais para nossos corpos ansiosos pela chuva. Eu quis partir, fugir, correr. Abandonei o pensamento. As botas enlameadas foram deixadas na entrada da casa, sujando o tapete branco. Não pense.
  Se for tarde demais, se por algum pequenino acaso fugimos para o lugar errado, se nos encontrarmos na esquina errada, vire as costas. Sei que você também gosta da chuva, mas por favor, por favor, por favor, por favor, por favor, implore pelo sol comigo. Façamos um mantra; faça seu coração parar como o meu. Não sonho, não penso, pense comigo: seria a primeira vez. Acho que farei um chá. Você gosta de chá, não é? Misturei todos os sabores da última vez, senti uma dor no peito tão forte que queria mais era desmaiar para fazê-la passar. Como no silêncio dos inocentes. É verão. E eu estou só.
  Às vezes eu sinto sua falta. Normalmente quando a chuva pára e o sol reaparece. Dói. Eu estava só, só, só. Mas, amor, às vezes eu sinto sua falta. Eu gosto de dançar sozinha. Não havia reconhecimento nos olhos de ninguém; nem no espelho. É verão. E eu estou só.
  Às vezes eu sinto sua falta.
  Fui recepcionada pelas borboletas do jardim morto; não me condene, deixei de cuidá-lo. Passei uma semana em uma biblioteca empoeirada esperando que alguém me buscasse, mas estou só. Odeio “adeus”; tchau. Ah, mas os olhares. Voltou a chover. Por favor, por favor, por favor, por favor. Estou só com as repetições, não é? Às vezes eu sinto sua falta.
  Não esqueça que eu me atiro. Não pude segurar o amor.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Acabou o "por enquanto" e virou "para sempre"

"Você me deu esperança. O que fiz por você foi nada."
    Ela, porém, olhando-o no fundo dos olhos, sorriu. "Você me deu liberdade."
Beijaram-se. Valeu por uma vida inteira.

domingo, 2 de setembro de 2012

Ao moço que não gostava de dormir,


    esta carta.
Fugi depois daquela quarta-feira, pois o meio da semana sempre se tornava maçante para mim. Percebo agora que existiam alguns quês e porquês e comos em mim que mesmo que pudesse eu saber o que eram, nunca resolveriam-se sozinhos. Por isso as fugas em que me metia acabavam sempre em leite com achocolatado, bem fraquinho, apenas uma corzinha dentro da xícara, para me aliviar da quinta-feira que viria e traria a mim novos quês e porquês e, desta vez, alguns quais também. Quinta-feira era o meu dia favorito porque o sol era mais bonito nas quintas, mais quente nas sextas e maior nos sábados, para então nos domingos simplesmente sumir. Eram nos domingos que nos encontrávamos, lembra-se?
  Encontrei-me com Verônica na última quarta, e lembrei-me de que ela também não era a maior fã dessa coisa de Beatles songs e Mick Jagger rebolando em palcos, o negócio da menina era Jazz. Me convidou pra ouvir um disco da Norah Jones na casa dela, e em resposta apenas sorri e neguei com a cabeça, você acha que deveria ter ido? Por certo seria legal, Verônica era uma menina com a cabeça firmada, sempre voando um pouco, entretanto. Sempre pedindo que a gente se levantasse quando passasse um casal, era um ritual para que o relacionamento dos dois desse certo. Assustamos um ou dois quando sentadas naquela cafeteria e ela acabou por derramar o chá de menta na própria saia, rindo histericamente e dizendo que isso era coisa que a Amy Winehouse faria. “Quem?” eu perguntei, apenas para fazer a moça rir ainda mais.
  Na última sexta, saí. Saí para respirar um pouco, sacudir um pouco o pó das roupas boas, sabe como é. Também não tenho dormido, não que isso importe alguma coisa. Acho que sempre tive tudo isso dentro de mim, insônia, só não praticava. Assisti aquele documentário que você me recomendou, porém não vi graça alguma. Os efeitos eram ruins e a fita parou na metade, riscando e fazendo uns sons estranhos. Não gosto de coisa velha, essa coisa de querer me enfiar goela abaixo os discos da Norah e fitas cassetes, essa coisa é tudo muito século 20. Ah, falando nisso, encontrei Guinevere semana passada. Disse que resolveu mudar o nome pois agora está vivendo em Paris. A pobre coitada acha que mudou o nome para francês, mas o original parecia muito mais do que o de agora, mas que é que ela sabe? Que é que eu sei mesmo? Ah, sim, eu sei cozinhar. Tive que jogar fora aquele pedaço de torta que te guardei, fiquei esperando o quanto pude, mas as tortas tem prazo de validade e aquele ali já estava passado. Passada fiquei eu ao receber tuas mensagens, cartas, cartões postais.
    Fazia séculos que eu não abria a caixa de correio. Que susto!
  Mas ah, meu moço, já é novamente quarta-feira. Passou-se toda a semana e chegamos novamente na metade, uma metade mal calculada, metade estranha, fora do normal, uma metade assimétrica, a-romântica, a-tudo. Semi certa, porém. Mentiras mal-contadas e verdades pela metade também. Mas você me escreveu, moço, me escreveu. Carrego essa carta por aí dentro do bolso do casaco mais caro, pois penso que se me roubarem pelo casaco, poderão também roubar um pedacinho do coração que deixei por ali, ainda batendo, em carne-viva. Fazer algum bem para a humanidade, sabe como é. Mas é quarta-feira, e pelos céus, todos sabem que amo as quintas.
    Quem sabe o amanhã chegue e eu lhe apareça na porta, com um pedacinho da torta que você assim tanto queria, um sorriso no rosto e uma timidez no olhar, o pedido de ‘me aceita’ quem sabe literalmente escrito na testa. O quem sabe, meu moço, demora para fazer sentido, quem sabe o quem sabe o faça algum dia, mas a generalidade dessa carta deverá ficar para outro dia. O forno novo que comprei acabou de fazer o seu bing! para avisar-me de que a primeira camada do pão-de-ló está pronta. Não reclame, todos sabem o quanto uma torta demora para ser feita. E é quarta-feira. Hoje é dia de fugir.
  Esquece de mim não. Lembre-se do 'quem sabe'. 
    Sempre sua,
Hannah Schröer

domingo, 15 de julho de 2012

E eu, tão amaldiçoada...


  Todos se foram e eu, tão amaldiçoada, resolvi ficar. Sentindo o peso do mundo nas costas e a barra das calças molhadas, avermelhadas da terra escura em que eu pisava. E eu me convencia de que esses maus tempos passariam, que essa coisa de maldição não dura tanto tempo assim, que não existe tempo determinado para acabar e é quando me dou por conta que a falta de tempo determinado determina que poderia eu passar toda a vida esperando e esperando e esperando, assim como quem caminha por um deserto infinito sem nunca achar um oasis sequer. Mas eles se foram e eu, tão amaldiçoada, fiquei.
  Eu detestava aquela cidade. Sabes como é, meu amigo, mas porto alegrense possui manias e vícios de linguagem que me tiravam do sério, como se o fato de fumarem até debaixo de chuva me grampeasse a orelha e me derrubasse ao chão, apenas por lembrar-me de que não possuo perverança alguma, e ah, que se dane, dizia a mim mesma, não sei esperar mesmo e morrerei assim, amaldiçoada, assistindo à partidas de tudo quanto é tipo, futebol, vôlei, basket e dos meus amores, todos eles sem entender bulhufas sobre as regras dos jogos. No final das contas, sempre quem cobrava a falta era eu, e sentia, lá no fundo, uma dor que ninguém mais compreenderia, apenas porque era minha e de mim ninguém tirava. Era a maldição, e ai de quem tivesse coragem de se opor.
  Me arrancava suspiros andar por aquelas esquinas debaixo da chuva de setembro apenas porque em setembro nunca chove em Porto Alegre, e em momentos especiais como essa exceção que os céus resolveram abrir se aproveita, se agarra à oportunidade e não se esquece de agradecer no final, mesmo que chuva significasse que meus cigarros seriam apagados e os goles no conhaque não seriam dados porque conhaque é forte demais para fracos como eu, eu dizia, e esperava um milagre cair dos céus e reverter a maldição, mas eu queria era distância de espelhos se isso significasse mais dor no reflexo. Um reflexo que era eu mesma e eu mesma preferia o silêncio. Tu me desculpes, amigo, mas Porto Alegre é simplesmente terrível.
  A chuva, entretanto, se fazia torrencial e lavava a capital, como lágrimas de um gigante que não divide ovos de ouro, apenas porque ouro branco é mais bonito e vai que, em um dia desses, a galinha resolve fabricar um ovo albino? E chora o gigante, e chora, chora, esquecendo-se completamente que, ei!, em setembro não chove, mas o gosto da chuva permanece em todas as línguas e nações, pois não existe melhor cheiro que esse. De terra vermelha, de terra que permanece grudada na barra das calças de alguém que odeia maldições.
  Mas ah, todos partiram, e eu, que não entendo as regras, fiquei. Maldição, espelhos quebrados e gatos pretos adotados de nome Mimi, escadas que encostaram-se contra o telhado, pois tu sabes, amigo, porto alegrense me tira do sério. Mas nada como chuva fora de época… Pensaremos, sentiremos. Multidão, maldição, todos se foram e eu, tão amaldiçoada… Resolvi ficar.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Dos homens que beijei




Dos homens que eu beijei, apenas um ainda mantém o gosto em meus lábios. Dos homens que beijei, apenas um se faz presente mesmo tendo partido já há longos anos. Os anos que pareciam nunca passar, mas que, por fim, passaram.

Eu estava na esburacada rua no fim de mundo que era aquela praia. Se filmes de terror me dessem medo, aquele lugar me assustaria, pois era exatamente como qualquer filme de mocinhas em perigo e estupradores. Eu sentia alguns grãos de areia fazerem seu croc-croc debaixo de meus chinelos e a sensação térmica deveria ser pelo menos o dobro. Sentia gotas de suor se formarem na base de minhas costas e o biquini parecer ser roupa demais, tamanho o calor. O sol brilhava forte e poucas nuvens alegravam o céu. Era clima de morte, por mais que continuem insistindo que clima de morte é chuva. O sol é muito mais infeliz.

Sentei sob a toalha e senti meu peso acomodar-se contra a areia macia. O sol refletia no chão e meus olhos doíam ao ter o brilho do mar brilhando sobre mim. Quis levantar e ir embora mas sabia que em casa seria muito pior. É normalmente assim quando resolve-se passar as férias com tios distantes. A distância é sempre um problema. Principalmente quando é a distância emocional. Escorei minha cabeça entre os joelhos e observei a cor da toalha. Era azul. 

(Não sei bem porquê sempre tenho essa cisma com cores. Mas elas me encantam.)

Meus dedos dos pés brincavam com a areia enquanto o sol torrava minha cabeça. Suspirei pesado esperando que um milagre caísse do céu e eu pudesse voltar para casa. Na verdade, o milagre poderia ser bem diferente.

Eu procurava a cura. Eu sabia que minha alma estava doente.

Aliás, já que falei sobre as cores, poderia apostar que minha alma tinha um tom acastanhado, como se realmente refletisse o tom de meus olhos. Me pergunto sempre se realmente podemos ver a alma das pessoas ao olhá-las nos olhos. Mas, afinal, quem é que pode responder?

E então ele chegou.

Senti respingos de água atingirem meus cabelos e pernas e fingi não sentir nada. Via pés masculinos parados na minha frente, como que esperando um sinal de que eu fosse levantar minha cabeça e olhar o corpo que ele andara esculpindo há meses. Essas coisas não me interessavam e ainda não interessam.

Aliás, a única coisa que me interessa, é as cores.

Ele sentou ao meu lado e eu sentia seu sorriso. Acho que temos disso, não é? De sentir os sorrisos? Não sei, mas eu podia sentir que ele estava sorrindo. Como se de alguma maneira milagrosa eu sentisse a frequência de seu sorriso, e essa frequência viesse diretamente a mim. Era, sinceramente, assustador.

-         Posso sentar aqui? – perguntou.

E sua voz me atingiu de uma maneira esmagadora. Ele tinha um jeito de falar de outro estado, outro mundo, na verdade. Tinha uma voz rouca e aveludada, e fazia cócegas em meus ouvidos. Aposto que era por não estarem acostumados a ouvir tamanha perfeição em uma voz só. Senti os pelos dos braços se eriçarem e um vento frio me atingir, fazendo voar para o lado os cabelos. Me obriguei a levantar a cabeça e, acredite, ele estava realmente sorrindo.

-         Já sentou. – respondo e ele sorri ainda mais.
-         Sentei. – ele concordou com a cabeça. Parecia achar algo de muito engraçado.

Ele tinha os cabelos muito louros, chegavam a brilhar no sol. Algumas mechas mais acastanhadas misturavam-se ao restante dos fios e seus olhos azuis eram irritantes. Lembro que ele piscava aqueles olhos azul-piscina e seus cílios faziam sombra em suas bochechas enquanto covinhas se formavam. Era um sorriso irônico, extremamente transtornante. Eu estava com raiva de um estranho de quem nem sabia o nome.

-         Gostaria de dar um mergulho comigo? – ele perguntou.
-         Ahn... não, não. Obrigada. – sorri.

Eis algo ridículo sobre mim: tenho fobia do mar.

(Mas não me condene. Se você tivesse os pesadelos que eu tenho, também teria medo. Se os sonhos fossem reais, eu já teria morrido pelo menos umas cinquenta vezes. E todas essas vezes era o mar o meu assassino.)

-         Eu também tenho hidrofobia. – ele comentou, ainda sorrindo.
-         Não tenho hidrofobia, tenho oceanofobia.
-         Isso é ridículo! – ele riu. Está bem, eu realmente tinha inventado a palavra. Ri junto.
-         Eu sei.

Já falei que sou apaixonada pelas cores? Pois é.

Senti o vento  bater em meu rosto enquanto o sol ia baixando no horizonte e refletindo-se no mar. Era um tom alaranjado, lilás e vermelho. Deveriam inventar um nome para essa mistura de cores. Quem sabe... cor de crepúsculo? Cor de alvorada? 

-       Sou apaixonada pelas cores. – eu disse ao estranho e ele continuava sorrindo. Será que ele não sentia câimbra nas bochechas de tanto sorrir?
-         Eu não sou apaixonado por nada. – deu de ombros.
-         Isso é triste.

Ele concordou com a cabeça e parou de sorrir. Eu via uma ruga se formar entre suas sobrancelhas e sua mandíbula contrair-se. Ele estava nervoso por algo e de repente senti vontade de abraça-lo. Queria colocar de volta aquele sorriso bonito de volta em seu rosto. Por mais irritante que fosse vê-lo sorrindo tanto. 

A cor de sua pele era muito clara. Ele quase chegava a refletir no sol, enquanto eu olhava os pelos de suas pernas, tão louros quanto os cabelos. Ele usava shorts azuis, que combinavam perfeitamente com a cor de seus olhos. E com a cor de minha toalha. E do meu biquini.

Azul era a cor daquele dia.

(Acho que cada dia tem uma cor. Em um dia verde podemos sentir um desejo enorme de voar. Sempre associo o verde ao vôo, nunca entendi o porquê. Em um dia azul, talvez possa ser o dia de se apaixonar. Em um dia cor-de-rosa, quem sabe, um dia para chorar? E o que poderia acontecer em um dia cor de crepúsculo?)

Embora parecesse muito mais cor de amanhecer.

-         Eu menti. – ele admitiu.
-         Sobre o quê?
-         Sou apaixonado pelo oceano.

Eu sorri. Vejam só, eu sorri! Isso não é algo que se vê todos os dias.

-         Achei que tinha dito ter medo de água. – comentei.
-         E tenho. Eu tremo inteiro só de pensar em me molhar, nadar, mergulhar. Mas é bom. – ele sorriu novamente.
-         Deve ser. – eu ri.
-         Vamos nadar? Vem comigo?

Ele levantou e sacudiu novamente os cabelos. As gotas que caíram em minhas pernas me refrescaram do sol escaldante daquela tarde na praia abandonada de filme de terror. Sorri imaginando que eu poderia ser a mocinha em perigo e ele o assassino. 

(Ou poderia ser o mocinho. Mas não nos foquemos nisso.)

Levantei e senti minhas pernas começarem a bambear só de lembrar de todos os pesadelos que já haviam me deixado semanas sem dormir. Ondas atrás de ondas, ondas gigantescas me sugando para o fundo do oceano onde meu corpo se perderia. Água entraria em meus pulmões e eu sentiria a pressão se formando em meus ouvidos enquanto a vida se esvaía de mim.

(Azul, além de ser cor para se apaixonar, pode significar cor de morte. Ao menos para mim.)

Caminhávamos em direção ao mar e ele continuava me olhando de canto, sorrindo. Aquele sorriso me tirava o fôlego mas me irritava até à alma. Era sarcástico, como se ele me analisasse a fundo, olhando-me os olhos e vendo minha alma.

(Falando nisso, acho que a sua alma não era azul como seus olhos.)

-         Pronta? – ele me perguntou quando chegamos à beirada do mar. Eu já sentia a espuminha fazendo cócegas em meus dedos e a areia amolecer-se debaixo de meus pés. Era desconfortável.
-         Não acho que algum dia estarei. – suspirei.

E então ele pegou em minha mão. 

O toque era quente, era elétrico. Ele tinha aqueles olhos também elétricos, azuis claros, com uma bordinha mais escura ao redor. Eu podia ver pequenos fragmentos de verde naquele olhar, e era esse verde que me irritava. Estava perdido no meio do azul, como se tivesse fugido de um par de olhos esverdeados e pousado em outro lugar. 

(Minha raiva era, na verdade, que não fossem fragmentos castanhos perdidos ali. Não conseguia admitir que não era o meu olhar que deixava-o elétrico. Mas, pensando bem, nunca gostei muito de levar choques.)

E eu senti.

Eu senti meus pelos se eriçarem mais uma vez enquanto ele me puxava com leveza mais para o fundo. Mas não acho que foi isso que me arrepiou.

-         Coragem! – ele gritou e sorriu. Eu sentia as ondas baterem em minhas coxas e estava irritada com a temperatura da água. Era gelada demais para o meu gosto.
-         Eu nunca fui corajosa! – gritei de volta.
-         Então comece hoje!

A água já passava da minha cintura quando o sol tocou no oceano.

(Às vezes sinto inveja do sol. Já parou pra pensar? Ele é capaz de tocar o mundo inteiro. O mundo... in-tei-ro. Inteirinho!)

A cor de crepúsculo dominava o céu enquanto o estranho continuava segurando minha mão. A eletricidade que ele me passava no começo de repente acabou. Seus olhos ainda me sondavam a alma e o verde perdido naquele olhar ainda me irritava profundamente. Ele era mais bonito do que devia.

-         Teus olhos são muito bonitos. – eu lhe disse. Ele sorriu ainda mais.
-         Já eu me apaixonei pelos teus.
-         Pensei que não se apaixonasse pelas coisas. – retruquei. Ele riu.
-         Eu menti, já lhe disse. Sou apaixonado pelo oceano. E agora, pela cor dos teus olhos. Um castanho tão puro...
-         E o seu é de um azul elétrico. 

Ele olhou para o horizonte enquanto pulávamos para nos livrar das ondas. (Admito que não era assim tão ruim.) O sol refletia em seu rosto e deixava-o dourado enquanto um tom avermelhado se formava em seus olhos e lábios.

(Não sei se já comentei alguma vez, mas o pôr-do-sol também me irrita. Nada tem o direito de possuir cores tão bonitas. É frustrante.)

-         Você fuma? – ele perguntou.
-         Não.
-         Já fumou alguma vez?
-         Sim.
-         E?
-         E o que? – eu ri. Ele riu também.
-         Não continuou fumando por quê?
Porque as cores da fumaça me irritavam. Azul acinzentado. Azul acinzentado é cor de escravidão.
-         Porque não gostei do gosto.
-         Ninguém gosta do gosto. – ele riu.
-         Cale-se.

Olhei para baixo e a cor do oceano me contagiou. Era verde, apesar de parecer azul. 

E então, quando ergui os olhos, ele me beijou.

(É injusto demais essas coisas não terem cor. Mas, se tivesse, tenho plena certeza que seria lilás. Cor de amor, se é que me entende.)

Ele segurava minha nuca e os cabelos, e sua boca fazia pressão contra a minha. Parecia um beijo urgente, necessário. Um beijo que poderia curar uma alma.

E era disso que eu precisava. Por mais salgado que fosse.

-         Qual seu nome? – ele me perguntou quando me soltou.
-         Fulana. – sorri.
-         Prazer, Fulana. Sou Beltrano. – e apertamos as mãos.

(Tudo que mais deveria ter cor no mundo é incolor. Ou talvez apenas tenhamos a alma daltônica.)

Quando saímos do mar, eu sentia minhas pernas caminharem firmes na areia. O estranho caminhava ao meu lado, sacudindo os louros cabelos e eu via os respingos fazerem pequenas marcas no chão. Ele recolheu suas coisas e me sorriu mais uma vez.

-         Adeus. – ele disse. E olhou-me profundamente nos olhos mais uma vez.
-         Adeus. – respondi sussurrando.

Ao lamber os lábios, senti o gosto salobre de seu beijo.
E nunca mais o vi.

Descartável, dobrável e cru


Com um suspiro que veio do profundo de seus pulmões, o caçador guardou a flecha na aljava novamente, sentindo as voltas em seu estômago como um aviso do que o aguardava para a noite: fome. Nada que não estivesse acostumado. Caminhou lentamente até a casa de trocas, sentindo as folhas debaixo de seus pés e o vento frio da noite em seu rosto, os cabelos louros sendo jogados para trás, as mãos tremendo, não por fraqueza, mas pela mais pura dor que o assolava.

Na primeira vez que havia matado uma pessoa, não dormiu por três noites. É claro que não deveria permitir esse tipo de atitude – afetaria em seu desempenho para alcançar seu destino – mas não pôde evitar. Os olhos arregalados, a boca entreaberta, o cheiro de sangue e as gotas deste espirradas em seu própio rosto. Três noites.

Na segunda vez, dormiu. Porém teve pesadelos. Dos mais vívidos e terríveis possíveis. Urubus e corvos e animais rastejantes lhe arrancavam os membros, lhe mordiam a face e bebiam de seu sangue.
E após a terceira vez, ele quis matar de novo.

Sacudiu a cabeça para livrar-se das memórias e abriu a porta da casa de trocas. O cheiro do lugar, terrível no começo, invadiu suas narinas e ele não pôde evitar de cerrar o cenho. Tabaco, cerveja, suor, urina e algo mais, talvez o perfume das prostitutas. Suspirou pesado e aproximou-se do balcão, tirando de sua sacola um cachimbo, como se o cheiro não fosse o suficiente e ele precisasse contribuir. A velha mulher por detrás do balcão lhe sorriu, os dentes amarelados e as olheiras debaixo dos olhos bastante pronunciadas. Ela também emitia um cheiro, cheiro de pessoa velha, se não for rude dizer algo assim. 

“Como vai, caçador?” ela lhe perguntou. É claro que ninguém sabia seu nome. Por que se importaria em conceder tal informação se logo partiria e deixaria para trás essa estúpida floresta? Ele não respondeu. “Não trouxe nada para mim hoje?”

“Você vê algo em minhas mãos?” sua voz rouca saiu confusa e ele pigarreou. 

A mulher soltou uma risada e passou a limpar alguns copos com um pano engordurado. Nenhuma presa, nada que o pudesse ajudar a ganhar um pedaço de pão ou um copo de água, ou quem sabe até um quarto para dormir. Achegando-se de um homem encostado por sobre o balcão, a cabeça descansando nos braços – provavelmente desmaiado após muitas bebidas – o caçador acendeu seu cachimbo com o do homem, aproveitando o fogo. O cheiro da erva aliviou a mistura de cheiros do lugar e ele quase sorriu. Como um bom negociante, ergueu as sobrancelhas à velha, apontando para um pedaço de carne seca pendurada em um gancho na parede. Pigarreou novamente para fazer sua voz sair mais entendível.

“Vai ter uma tempestade hoje à noite,” ele disse.
“Oh, é mesmo?” ela respondeu, não muito interessada.
“Isso significa que os animais estão escondidos. Não sairão hoje, nem que morram de fome,” ele continuou.
“E no que isso se assemelha a você?” ela riu. O caçador bufou e deu mais uma tragada no cachimbo antes de continuar.
“Prefere cobras? Ou quem sabe sapos? Dê-me um pedaço da carne e amanhã lhe trago um coelho gordo, quem sabe dois,” ele disse e interrompeu-a quando ela já começava a negar. “Tudo bem. Posso ir para a outra casa de trocas no lado oeste da floresta.”

Com um humor muito melhor, o caçador saiu do lugar, sentindo o ar frio da noite. O estômago cheio, os pulmões aliviados, a cabeça leve. Ele olhou para cima e suspirou. Teria de encontrar um lugar para dormir. Era esse os destinos dos caçadores, dos desabrigados, dos sem família. Passar as noites frias de tempestade sozinhos, debaixo de uma árvore ou dentro de uma toca, como pequenos e assustados coelhos, exceto pelo azedume de seus corações. Pisando silenciosamente, como um pequeno gato, o caçador caminhou por entre as árvores, seguindo rumo nenhum, as pernas se movendo automaticamente.

“Dalrod,” chamou uma voz conhecida, suave e doce contra o vento frio da noite. O caçador virou sua cabeça, olhando para trás e encontrando os azuis olhos de Ember. Aqueles olhos que denunciavam uma pequena e inocente menina, mesmo que ela também mantivesse sua feição sob uma máscara de frieza. Ela era a única na floresta que lhe sabia o nome, é claro.

“Achei que estivesse em sua árvore,” ele respondeu, a voz rouca fazendo cócegas em sua garganta. Pigarreou mais uma vez, esquecendo que isso nunca adiantava.
“Vai ter tempestade,” ela explicou-se.
“Não me diga,” respondeu ele, soando mais sarcástico do que realmente pretendia. Ela riu.
“Estava tentando achar uma caverna, mas encontrei você ao invés,” ela disse, baixando os olhos, a pouca luz denunciando uma cor um tanto mais escura em suas bochechas. Dalrod sorriu um pouco, as curvas de seus lábios movendo-se para cima, o típico sorriso de quem passou anos evitando sorrir.
“Vem,” ele chamou, começando a caminhar, direcionando-se à caverna onde já havia passado algumas noites. Ember caminhava silenciosamente ao lado dele, o calor de seu corpo, perto do dele, lhe trazendo mais alguns sorrisos. O arco e a aljava em suas costas fazia peso com as novas flechas e com o canto do olho Dalrod percebeu que talvez Ember fosse precisar de algumas. Enquanto dormisse ele poderia esconder algumas em sua aljava.

E ali estava, a prova de que o que tanto odiava e evitava estava acontecendo. Um caçador frio e sem coração, especialmente um como ele, buscando alcançar seu destino, não deveria se importar com ninguém. Não deveria sorrir. Não deveria ter companhia durante a noite. O enfraquecia, o tornava vulnerável. Amor não é algo para pessoas como ele.

Espera. Amor?

“Como está sua mão?” ela interrompeu seus pensamentos.

Dalrod apertou o passo enquanto lembrava de algumas semanas atrás, quando em uma manhã, socou uma árvore até que sua mão direita, e um tanto da esquerda, ficou em carne viva, o sangue escorrendo e a dor lhe tirando os sentidos. Socara a árvore para evitar sentir, Ember cuidou de suas mãos, sentiu ainda mais. Soluções trágicas para problemas temporários – ou quem sabe não.

“Está bem. Usei as bandagens por alguns dias, prometo,” ele sorriu e a risada de Ember lhe fez cócegas no ouvido, esquentando sua frieza, derretendo seu gelo. Ela caminhava um tanto atrás, em diagonal à ele e respirava tão silenciosamente que ele mal podia ouví-la. É claro, ela também estava acostumada com a floresta. 

O silêncio, normalmente bem-vindo, era estranho para ele, o fazia pensar, refletir. Já pensava demais quando sozinho, com Ember ao lado queria apenas... descansar. Por mais estranho que parecesse, ouvir sua voz lhe trazia paz, esperança. Ela lhe trazia esperança. Esperança de que existia solução para ele. Para o humano tão frio como escamas de dragão. Ironicamente. “Você está com fome?” ele perguntou, quando a caverna estava mais perto e ele já podia ver suas sombras escuras na noite também escura.

“Um pouco,” ela admitiu, e Dalrod pensou se ela estava mentindo, diminuindo a intensidade da fome para que não soasse desesperada, mas não perguntou mais nada. Tirou um pedaço da metade de carne seca que guardara e lhe entregou, calorosamente recebendo seu sorriso de gratidão. Suspirou.

Um trovão retumbou nas alturas, lembrando aos dois que não se pode controlar a natureza, e, fugindo realmente de seu controle, algumas gotas geladas de chuva passaram a cair, molhando os cabelos louros de Dalrod, ao que ele puxou o capuz de seu sobretudo, mencionando à Ember que corressem.

A caverna era receptiva, o calor e a sua amplidez lhes davam segurança da chuva que já caía em torrentes, lavando a floresta. Ember passou a trabalhar na entrada, construindo um certo tipo de porta, protegendo-os do vento e de predadores que fossem mais corajosos para sair debaixo da tempestade. O caçador pegou de dentro de sua sacola duas pedras bruscas e alguns galhos que, por precaução, sempre mantinha consigo. Se a porta de Ember funcionasse, fogo seria bem-vindo. 

Ela sorriu e sentou perto da fogueira, as luzes fazendo sombras em seu rosto. Dalrod olhou-a por alguns minutos, desviando os olhos quando ela o encarou de volta. Tirando uma faca de dentro de um bolso de seu casaco, ele passou a rabiscar no chão da caverna, a cabeça um tanto longe. O silêncio era sufocante, embora a garota não parecesse se importar com ele. Ela soltou seu cabelo, sempre amarrado em uma trança, e passou a penteá-los com os dedos, algumas gotas de água caindo deles, marcando o chão com pequenos pontos escuros, logo secando-se graças ao calor do fogo. 

“Aquele dia em que nos despedimos,” ela começou, mas ele levantou a mão, pedindo que parasse.
“Ember, não. Não precisamos falar sobre aquilo,” ele disse. Ela sorriu tristemente.
“Eu só quero entender. Você disse que nunca voltaria.”

Eram as suas intenções. Abandonar a garota que o fizera sentir, a garota que o fizera ter esperança. Rir, chorar, a garota que o trouxera um desejo de estar perto, de abraçar, de... Suspirando, ele acenou com a cabeça por um momento, lembrando daquelas semanas que passara na Ilha, o desejo de voltar que se instalou em seu coração e o tanto que lutou para ignorá-lo. 

“Eu não ia voltar,” ele lhe disse.

Ember parecia querer chorar novamente. As memórias de sua despedida eram frescas em sua mente, o desejo de consolá-la, de abraçá-la até que toda a dor passasse. Odiava vê-la chorando. “Então por que voltou?” ela perguntou-lhe, dizendo exatamente o que Dalrod anciava que ela não dissesse.

Ele passou os dedos por entre seus cabelos, puxando com força alguns fios para trás, utilizando, como sempre, a dor para o acordar. Ele poderia dizer tantas palavras. Contar-lhe que não encontrara nenhum dragão e sua ida à Ilha fora inútil. Que todas as pessoas lhe pareceram frias e sem emoção, assim como ele, tão diferentes dela, de seu calor. Que a floresta era como sua casa, que queria estar perto dela. Eram palavras demais para alguém que preferia o silêncio. Ao menos o dele.

“Eu senti sua falta,” ele lhe respondeu, juntamente com um trovão ressoando no céu, apagando sua voz.
“O que?” ela perguntou, confusa. Dalrod sorriu um pouco, virando as costas para a garota do sorriso caloroso, dos olhos oceânicos, contrastando com todo seu fogo, da esperança, da voz doce. Deitando sua cabeça em uma pedra e abraçando seu próprio corpo, ele fechou os olhos.
“Boa noite, Ember,” ele disse.
“Boa noite, Dalrod,” ela respondeu, deitando ao seu lado, suas costas encostando nas dele.

Abrindo um pouco os olhos, o caçador puxou de dentro de suas roupas um colar, uma face gelada e a outra quente, devido ao toque com a pele. O pingente de dragão refletia a luz avermelhada do fogo quase extinguido e o ressonar de Ember era o único som além da chuva caindo. Não conseguindo evitar, deixou uma única lágrima cair de seus olhos verdes, frios como uma geleira inteira, escondendo a dor da solidão por detrás das pupilas. 

Ele era um Caçador de Dragões. Mas nunca havia matado um. Mataria a si mesmo  se possuísse escamas para provar-lhe de sua frieza, de sua dor. Que esperanças haviam para ele? Estava perdido.

“Eu amo você,” sussurrou em uma voz inaudível, ao que Ember nem ao menos se mexeu durante seu sono. Ela provavelmente sabia que ele iria embora pela manhã, que a deixaria novamente. Não era isso que ele fazia? Fugir?

Ou talvez pudesse dormir um pouco mais... a noite era longa. E certas decisões podem esperar pela manhã.